A Doutrina Secreta

Quando se lança um golpe de vista sobre o passado, quando se evoca a recordação das religiões desaparecidas, das crenças extintas, apodera-se de nós uma espécie de vertigem ante o aspecto das sinuosidades percorridas pelo pensamento humano. Lenta é sua marcha. Parece, a princípio, comprazer-se nas criptas sombrias da Índia, nos templos subterrâneos do Egito, nas catacumbas de Roma, na meia-luz das catedrais; parece preferir os lugares escuros à atmosfera pesada das escolas, o silêncio dos claustros às claridades do céu, aos livres espaços, em uma palavra, ao estudo da Natureza.


Um primeiro exame, uma comparação superficial das crenças e das superstições do passado conduz inevitavelmente à dúvida. Mas, levantando-se o véu exterior e brilhante que ocultava às massas os grandes mistérios, penetrando-se nos santuários da Idéia religiosa, achamo-nos em presença de um fato de alcance considerável. As formas materiais, as cerimônias extravagantes dos cultos tinham por fim chocar a Imaginação do povo. Por trás desses véus, as religiões antigas apareciam sob aspecto diverso, revestiam caráter grave e elevado, simultaneamente científico e filosófico. Seu ensino era duplo: exterior e público de um lado, interior e secreto de outro, e, neste último caso, reservado somente aos “iniciados”.


Conseguiu-se, não há muito, reconstituir esse ensino secreto, após pacientes estudos e numerosas descobertas epigráficas. Desde então, dissiparam-se a obscuridade e a confusão que reinavam nas questões religiosas; com a luz, fez-se a harmonia. Adquiriu-se a prova de que todos os ensinos religiosos do passado se ligam, porque, em sua base, se encontra uma só e mesma doutrina, transmitida de Idade em Idade a uma série ininterrupta de sábios e pensadores.

Todas as grandes religiões tiveram duas faces, uma aparente, outra oculta. Está nesta o espírito, naquela a forma ou a letra. Debaixo do símbolo material, dissimula-se o sentido profundo. O Bramanismo, na Índia, o Hermetismo, no Egito, o Politeísmo grego, o próprio Cristianismo, em sua origem, apresenta esse duplo aspecto. Julgá-las pela face exterior e vulgar é o mesmo que apreciar o valor moral de um homem pelos trajos. Para conhecê-las, é preciso penetrar o pensamento íntimo que lhes Inspira e motiva a existência; cumpre desprender do selo dos mitos e dogmas o princípio gerador que lhes comunica a força e a vida.

Descobre-se, então, a doutrina única, superior, imutável, de que as religiões humanas não são mais que adaptações imperfeitas e transitórias, proporcionadas às necessidades dos tempos e dos meios.  Em nossa época, muitos fazem uma concepção do Universo, uma Idéia da verdade, absolutamente exterior e material. A ciência moderna, em suas investigações, tem-se limitado a acumular o maior número de fatos, e, depois, a deduzir daí as suas leis.

Obteve, assim, maravilhosos resultados, porém, por tal preço, ficar-lhe-á sempre inacessível o conhecimento dos princípios superiores e das causas primitivas. As próprias causas secundárias escapam-lhe o domínio invisível da vida é mais vasto do que aquele que é atingido pelos nossos sentidos: lá reinam essas causas de que somente vemos os efeitos. Na antigüidade tinham outra maneira de ver, e um proceder muito diferente. Os sábios do Oriente e da Grécia não desdenhavam observar a natureza exterior, porém era sobretudo no estudo da alma, de suas potências íntimas, que descobriam os princípios eternos.

Para eles, a alma era como um livro em que se Inscrevem, em caracteres misteriosos, todas as realidades e todas as leis. Pela concentração de suas faculdades, pelo estudo profundo e meditativo de si mesmos, elevaram-se até à Causa sem causa, até ao princípio de que derivam os seres e as coisas. As leis inatas da inteligência explicavam-lhes a harmonia e a ordem da Natureza, assim como o estudo da alma lhes dava a chave dos problemas da vida.

A alma, acreditavam, colocada entre dois mundos, o visível e o oculto, o material e o espiritual, observando-os, penetrando em ambos, é o Instrumento supremo do conhecimento. Conforme seu grau de adiantamento ou de pureza, reflete, com maior ou menor intensidade, os raios do foco divino. A razão e a consciência não só guiam nossa apreciação e nossos atos, mas também são os mais seguros meios para adquirir-se e possuir-se a verdade. A tais pesquisas era consagrada a vida Inteira dos Iniciados. Não se limitavam, como em nossos dias, a preparar a mocidade com estudos prematuros, insuficientes, mal dirigidos, para as lutas e deveres da existência.

Os adeptos eram escolhidos, preparados desde a Infância para a carreira que deviam preencher, e, depois, levados gradualmente aos píncaros intelectuais, de onde se pode dominar e julgar a vida. Os princípios da ciência secreta eram-lhes comunicados numa proporção relativa ao desenvolvimento das suas Inteligências e qualidades morais. A iniciação era uma refundição completa do caráter, um acordar das faculdades latentes da alma. Semente quando tinha sabido extinguir em si o fogo das paixões, comprimir os desejos impuros, orientar os Impulsos do seu ser para o Bem e para o Belo, é que o adepto participava dos grandes mistérios.

Obtinha, então, certos poderes sobre a Natureza, e comunicava-se com as potências ocultas do Universo. Não deixam subsistir dúvida alguma sobre tal ponto os testemunhos da História a respeito de Apolônio de Tiana e de Simão, o Mago, bem como os fatos, pretensamente miraculosos, levados a efeito por Moisés e pelo Cristo. Os iniciados conheciam os segredos das forças fluídicas e magnéticas.

Este domínio, pouco familiar aos sábios dos nossos dias, a quem se afiguram inexplicáveis os fenômenos do sonambulismo e da sugestão, no meio dos quais se debatem impotentes em conciliá-los com teorias preconcebidas, esse domínio, a ciência oriental dos santuários havia explorado, e estava possuidora de todas as suas chaves. Nele encontrava meios de ação incompreensíveis para o vulgo, mas facilmente explicáveis pelos fenômenos do Espiritismo.

Em suas experiências fisiológicas, a ciência contemporânea chegou ao pórtico desse mundo oculto conhecido dos antigos e regido por leis exatas. Ainda bem perto está o dia em que a força dos acontecimentos e o exemplo dos audaciosos constrangê-la-ão a tal. Reconhecerá, então, que nada há aí de sobrenatural, mas, ao contrário, uma face ignorada da Natureza, uma manifestação das forças sutis, um aspecto novo da vida que enche o Infinito. Se, do domínio dos fatos, passarmos ao dos princípios, teremos de esboçar desde logo as grandes linhas da doutrina secreta.

Ao ver desta, a vida não é mais que a evolução, no tempo e no espaço, do Espírito, única realidade permanente. A matéria é sua expressão inferior, sua forma variável. O Ser por excelência, fonte de todos os seres, é Deus, simultaneamente triplo e uno — essência, substância e vida — em que se resume todo o Universo. Daí o deísmo trinitário que, da Índia e do Egito, passou, desfigurando-se, para a doutrina cristã. Esta, dos três elementos do Ser, fez as pessoas.

A alma humana, parcela da grande alma, é imortal. Progride e sobe para o seu autor através de existências numerosas, alternativamente terrestres e espirituais, por um aperfeiçoamento continuo. Em suas encarnações, constitui ela o homem, cuja natureza ternária — o corpo, o perispírito e a alma —, centros correspondentes da sensação, sentimento e conhecimento, torna-se um microcosmo ou pequeno mundo, imagem reduzida do macrocosmo ou “Grande Todo”. Eis por que podemos encontrar Deus no mais profundo do nosso ser, interrogando a nós mesmos na solidão, estudando e desenvolvendo as nossas faculdades latentes, a nossa razão e consciência.

Tem duas faces a vida universal: a involução ou descida do Espírito à matéria para a criação individual, e a evolução ou ascensão gradual, na cadeia das existências, para a Unidade divina. Prendia-se a esta filosofia um feixe inteiro de ciências: a Ciência dos Números ou Matemáticas Sagradas, a Teogonia, a Cosmogonia, a Psicologia e a Física. Nelas, os métodos indutivo e experimental combinavam-se e serviam-se reciprocamente de verificação, formando, assim, um todo imponente, um edifício de proporções harmônicas.

Este ensino abria ao pensamento perspectivas suscetíveis de causarem vertigem aos espíritos mal preparados, e por isso era somente reservado aos fortes. Se, por verem o infinito, as almas débeis ficam perturbadas e desvairadas, as valentes fortificam-se e medram. É no conhecimento das leis superiores que estas vão beber a fé esclarecida, a confiança no futuro, a consolação na desgraça. Tal conhecimento produz benevolência para com os fracos, para com todos esses que se agitam ainda nos círculos Inferiores da existência, vítimas das paixões e da Ignorância; Inspira tolerância para com todas as crenças.

O iniciado sabia unir-se a todos e orar com todos. Honrava Brahma na Índia, Osíris em Mênfis, Júpiter na Olímpia, como pálidas imagens da Potência Suprema, diretora das almas e dos mundos. É assim que a verdadeira religião se eleva acima de todas as crenças e a nenhuma maldiz. O ensino dos santuários produziu homens realmente prodigiosos pela elevação de vistas e pelo valor das obras realizadas, uma elite de pensadores e de homens de ação, cujos nomes se encontram em todas as páginas da História.

Daí saíram os grandes reformadores, os fundadores de religiões, os ardentes propagandistas: Krishna, Zoroastro, Hermes, Moisés, Pitágoras, Platão e Jesus; todos os que têm posto ao alcance das multidões as verdades sublimes que fazem sua superioridade. Lançaram aos ventos a semente que fecunda as almas, promulgaram a lei moral, imutável, sempre e em toda parte semelhante a si mesma. Mas, não souberam os discípulos guardar intacta a herança dos mestres. Mortos estes, os seus ensinos ficaram desnaturados e desfigurados por alterações sucessivas.

A mediocridade dos homens não era apta a perceber as coisas do espírito, e bem depressa as religiões perderam a sua simplicidade e pureza primitivas. As verdades que tinham sido ensinadas foram sufocadas sob os pormenores de uma interpretação grosseira e material. Abusou-se dos símbolos para chocar a imaginação dos crentes, e, muito breve, a idéia máter ficou sepultada e esquecida sob eles. A verdade é comparável às gotas de chuva que oscilam na extremidade de um ramo. Enquanto aí ficam suspensas, brilham como puros diamantes aos raios do Sol; desde, porém, que tocam o chão, confundem-se com todas as impurezas. O que nos vem de cima mancha-se ao contacto terrestre. Até mesmo ao seio dos templos levou o homem as suas concupiscências e misérias morais. Por Isso, em cada religião, o erro, este apanágio da Terra, mistura-se com a verdade, este bem dos céus.

Pergunta-se algumas vezes se a religião é necessária. A religião (do latim religare, ligar, unir), bem compreendida, deveria ser um laço que prendesse os homens entre si, unindo-os por um mesmo pensamento ao princípio superior das coisas. Há na alma um sentimento natural que a arrasta para um ideal de perfeição em que se identificam o Bem e a Justiça. Este sentimento, o mais nobre que poderemos experimentar, se fosse esclarecido pela Ciência, fortificado pela razão, apoiado na liberdade de consciência, viria a ser o móvel de grandes e generosas ações; mas, manchado, falseado, materializado, tornou-se, muitas vezes, pelas inquietações da teocracia, um instrumento de dominação egoística.

A religião é necessária e indestrutível porque se baseia na própria natureza do ser humano, do qual ela resume e exprime as aspirações elevadas. É, igualmente, a expressão das leis eternas, e, sob este ponto de vista, tende a confundir-se com a filosofia, fazendo com que passe do domínio da teoria ao da execução, tornando-se vivaz e ativa. Mas, para exercer uma influência salutar, para voltar a ser um incitante de progresso e elevação, a religião deve despojar-se dos disfarces com que se revestiu através dos séculos. Não são os seus elementos primordiais que devem desaparecer, mas, sim, as formas exteriores, os mitos obscuros, o culto, as cerimônias.

Cumpre evitar confundir coisas tão dessemelhantes. A verdadeira religião é um sentimento; é no coração humano, e não nas formas ou manifestações exteriores, que está o melhor templo do Eterno. A verdadeira religião não poderia ser encerrada dentro de regras e ritos acanhados; não necessita de sacerdotes nem de fórmulas nem de imagens. Pouco se Inquieta com simulacros e modos de adorar; só julga os dogmas por sua Influência sobre o aperfeiçoamento das sociedades.

Abraça todos os cultos, todos os sacerdócios, eleva-se bastante e diz-lhes: A Verdade ainda está muito acima! Entretanto, deve-se compreender que nem todos os homens se acham em vias de atingir esses píncaros intelectuais. Eis por que a tolerância e a benevolência são coisas que se impõem. Se, por um lado, o dever convida-nos a desprender os bons espíritos dos aspectos vulgares da religião, por outro, é preciso nos abstermos de lançar a pedra às almas sofredoras, lacrimosas, Incapazes de assimilar noções abstratas, mas que encontram arrimo e conforto na sua cândida fé.

Verifica-se, porém, que, de dia para dia, diminui o número dos crentes sinceros. A Idéia de Deus, outrora simples e grande nas almas, foi desnaturada pelo temor do inferno, e perdeu seu poder. Na impossibilidade de se elevarem até ao absoluto, certos homens acreditaram ser necessário adaptar à sua forma e medida tudo o que queriam conceber. Foi assim que rebaixaram Deus ao nível deles próprios, atribuindo-lhe as suas paixões e fraquezas, amesquinhando a Natureza e o Universo, e, sob o prisma da ignorância, decompondo em cores diversas os argênteos raios da verdade. As claras noções da religião natural foram obscurecidas a bel-prazer. A ficção e a fantasia engendraram o erro, e este, preso ao dogma, ergueu-se como um obstáculo no meio do caminho.

A luz ficou velada para aqueles que se acreditavam seus depositários, e as trevas, com que pretendiam envolver os outros, fizeram-se em si próprios e ao seu redor. Os dogmas perverteram o critério religioso, e o interesse de casta falseou o senso moral. Daí um acervo de superstições, de abusos e práticas idólatras, cujo espetáculo lançou tantos homens na negação. A reação, porém, anuncia-se.

As religiões, imobilizadas em seus dogmas como as múmias em suas faixas, agora agonizam, abafadas em seus invólucros materiais, enquanto tudo marcha e evolve em torno delas. Perderam quase toda a influência sobre os costumes, sobre a vida social, e estão destinadas a perecer. Mas, como todas as coisas, as religiões só morrem para renascer. A idéia que os homens fazem da Verdade modifica-se e dilata com o decorrer dos tempos. Eis por que as religiões, manifestações temporárias, vistas parciais da eterna Verdade, tendem a transformar-se desde que já tenham cumprido a sua tarefa, e não mais correspondam aos progressos e às necessidades da Humanidade.

A medida que esta caminha, são precisas novas concepções, um ideal mais elevado, e isso só poderá ser encontrado nas descobertas da Ciência, nas intuições crescentes do pensamento. Chegamos a uma época da História em que as religiões encanecidas aluem-se por suas bases, época em que se prepara uma renovação filosófica e social. O progresso material e intelectual desafia o progresso moral. Na profundeza das almas agita-se um mundo de aspirações, que faz esforços por tomar forma e aparecer à vida. O sentimento e a razão, essas duas grandes forças imperecíveis como o Espírito humano, de que são atributos, forças hostis até hoje e que perturbavam a sociedade com os seus conflitos, semeando por toda parte a discórdia, a confusão e o ódio, tendem, finalmente, a se conciliarem.

A religião deve perder seu caráter dogmático e sacerdotal para tornar-se científica; a ciência libertar-se-á dos baixios materialistas para esclarecer-se com um raio divino. Surgirá uma doutrina, idealista em suas tendências, positiva e experimental em seu método, apoiada sobre fatos inegáveis. Sistemas opostos na aparência, filosofias contraditórias e inimigas, o Espiritismo e o Naturalismo, entre outras, acharão, afinal, um terreno de reconciliação.

Síntese poderosa, ela abraçará e ligará todas as concepções variadas do mundo e da vida, raios dispersos, faces variadas da Verdade. Será a ressurreição, sob forma mais ampla e a todos acessível, dessa doutrina que o passado conheceu, será o aparecimento da religião natural que renascerá simples, sem cultos nem altares.

Cada pai será sacerdote em sua família, ensinará e dará o exemplo. A religião passará para os atos, para o desejo ardente do bem; o holocausto será o sacrifício de nossas paixões, o aperfeiçoamento do Espírito humano. Tal é a doutrina superior, definitiva, universal, no seio da qual serão absorvidas, como os rios pelo oceano, todas as religiões passageiras, contraditórias, causas freqüentes de dissidência e dilaceração para a Humanidade. 

Compilado do livro Depois da Morte de Leon Denis