No dia imediato, pela manhã, em companhia de
entidades ignorantes e transviadas, dirigimo-nos para confortável residência
onde espetáculo inesperado nos surpreenderia. O edifício de enormes dimensões
denunciava a condição aristocrática dos moradores, não só pela grandeza das
linhas, mas também pelos admiráveis jardins que o rodeavam.
Paramos junto à ala esquerda, notando-a
ocupada por muitas personalidades espirituais de aspecto deprimente. Rostos
patibulares, carantonhas sinistras. Sem dúvidas, aquela construção residencial
permanecia vigiada por carcereiros frios e impassíveis, a julgar pelas sombras
que os cercavam. Transpus o limiar, de alma opressa.
O ar jazia saturado de elementos
intoxicantes. Dissimulei, a custo, o mal-estar, recolhendo impressões aflitivas
e dolorosas. Entidades inferiores, em grande cópia, afluíram à sala de entrada,
sondando-nos as intenções. De posse, porém, das instruções do nosso orientador,
tudo fazíamos para nos assemelharmos a delinquentes vulgares.
Reparei que o próprio Gúbio se fizera tão
escuro, tão opaco na organização perispirítica, que de modo algum se faria
reconhecível, à exceção de nós que o seguíamos, atentos, desde a primeira hora.
Instado por Sérgio, um gaiato rapaz que nos introduziu com maneiras menos
dignas, Saldanha, o diretor da falange operante, veio receber-nos.
Pôs-se a fazer gestos hostis, mas, ante a
senha com que Gregório nos favorecera, admitiu-nos na condição de companheiros
importantes. O chefe deliberou apertar o cerco? Perguntou ao nosso instrutor,
confidencialmente. Sim, informou Gúbio,
de modo vago, desejaríamos examinar as condições gerais do assunto e auscultar
a doente.
A jovem senhora vai cedendo, devagarinho, esclareceu
a singular personagem, indicando-nos vasto corredor atulhado de substâncias
fluídicas detestáveis. Acompanhou-nos, um tanto solícito, mas desconfiado, e,
em seguida a breve pausa, deixou-nos livre a entrada da grande câmara de casal.
A manhã resplandecia, lá fora, e o sol
visitava o quarto, através da vidraça cristalina. Mulher ainda moça, mostrando
extrema palidez nas linhas nobres do semblante digno, entregava-se a tormentosa
meditação. Compreendi que atingíramos a intimidade de Margarida, a obsidiada
que o nosso orientador se propunha socorrer.
Dois desencarnados, de horrível aspecto
fisionômico, inclinavam-se, confiantes e dominadores, sobre o busto da enferma,
submetendo-a a complicada operação magnética. Essa particularidade do quadro
ambiente dava para espantar. No entanto, meu assombro foi muito mais longe,
quando concentrei todo o meu potencial de atenção na cabeça da jovem
singularmente abatida.
Interpenetrando a matéria espessa da
cabeceira em que descansava, surgiam algumas dezenas de corpos ovóides, de
vários tamanhos e de cor plúmbea, assemelhando-se a grandes sementes vivas,
atadas ao cérebro da paciente através de fios sutilíssimos, cuidadosamente
dispostos na medula alongada.
A obra dos perseguidores desencarnados era
meticulosa, cruel. Margarida, pelo corpo perispirítico, jazia absolutamente,
presa não só aos truculentos perturbadores que a assediavam, mas também à vasta
falange de entidades inconscientes, que se caracterizavam pelo veículo mental,
a se lhe apropriarem das forças, vampirizando-a em processo intensivo.
Em verdade, já observara, por mim, grande
quantidade de casos violentos de obsessão, mas sempre dirigidos por paixões
fulminatórias. Entretanto, ali verificava o cerco tecnicamente organizado. Evidentemente,
as formas ovóides haviam sido trazidas pelos hipnotizadores que senhoreavam o
quadro.
Com a devida permissão, analisei a zona
física hostilizada. Reparei que todos os centros metabólicos da doente
apareciam controlados. A própria pressão sanguínea demorava-se sob o comando
dos perseguidores. A região torácica apresentava apreciáveis feridas na pele e,
examinando-as, cuidadoso, vi que a enferma inalava substâncias escuras que não
somente lhe pesavam nos pulmões, mas se refletiam, sobremodo, nas células e
fibras conjuntivas, formando ulcerações na epiderme.
A vampirização era incessante. As energias
usuais do corpo pareciam transportadas às formas ovóides, que se alimentavam
delas, automaticamente, num movimento indefinível de sucção. Lastimei a
impossibilidade de consulta imediata ao Instrutor, porquanto Gúbio,
naturalmente, se estivesse livre, nos forneceria esclarecimentos amplos, mas
concluí que a infortunada senhora devia ter sido colhida através do sistema
nervoso central, de vez que os propósitos sinistros dos perseguidores se faziam
patentes quanto à vagarosa destruição das fibras e células nervosas. Margarida
demonstrava-se exausta e amargurada.
Dominadas as vias do equilíbrio no cerebelo e
envolvidos os nervos óticos pela influência dos hipnotizadores, seus olhos
espantados davam idéia dos fenômenos alucinatórios que lhe acometiam a mente,
deixando perceber o baixo teor das visões e audições interiores a que se via
submetida. Interrompi, no entanto, as observações acuradas, a fim de verificar
a atitude psicológica do nosso orientador, que se arriscara à aventura para
socorrer aquela senhora doente a quem amava por filha muito querida ao coração.
Esforçava-se Gúbio por não trair a imensa
piedade que o senhoreava, diante da enferma conduzida para a morte. Dentro de
minha condição de humanidade, reconheci que, se a doente me fosse assim tão
cara, não teria vacilado um momento. Movimentaria passes de libertação, ao
longo do bulbo, retirar-lhe-ia aquela carga pesada e inútil de mentes
enfermiças e, em seguida, lutaria contra os perseguidores, um a um.
Nosso Instrutor, porém, assim não procedeu.
Fixou a paisagem aflitiva com inequívoca tristeza, mas, logo após, demorou o
olhar bondoso em Saldanha, como a pedir-lhe impressões mais profundas. Secretamente
tocado pelo impulso positivo do nosso dirigente, o chefe da tortura se sentiu
na obrigação de prestar-lhe informações espontâneas.
Estamos em serviço mais ativo, há dez dias
precisamente, elucidou, resoluto. A presa foi colhida em cheio e, felizmente,
não contamos com qualquer resistência. Se vieram colaborar conosco, saibam que,
segundo acredito, não temos maior trabalho a fazer. Mais alguns dias e a
solução não se fará esperar.
A meu ver, Gúbio conhecia todas as
particularidades do assunto, mas, no propósito evidente de captar simpatia,
Interrogou: E o marido? Ora, esclareceu Saldanha com escarninho sorriso, o
infeliz não tem a menor noção de vida moral. Não é mau homem; todavia, no
casamento foi apenas transferido de gozador da vida a homem sério.
A paternidade constituir lhe ia um trambolho
e filhinhos, se os recebesse, não passariam para ele de curiosos brinquedos.
Hoje, conduzirá a esposa à igreja. E, reforçando a inflexão sarcástica,
acentuou: Vão à missa, na esperança de melhoras.
Mal acabara a informação, tristonho e
simpático cavalheiro, em cuja expressão carinhosa identifiquei, de pronto, o
esposo da vítima, entrou no aposento, com ela permutando palavras amorosas e
confortantes. Amparou-a, prestimoso, e ajudou-a a vestir-se com esmero.
Decorridos alguns minutos, notei, apalermado,
que os cônjuges, acompanhados por extensa súcia de perseguidores, tomavam um
táxi na direção dum templo católico. Seguimo-nos sem detença. O veículo, a meu
ver, transformara-se como que num carro de festa carnavalesca. Entidades diversas
aboletavam-se dentro e em torno dele, desde os pára-lamas até o teto luzente. Minha
curiosidade era enorme.
Descendo à porta de elegante santuário,
observei estranho espetáculo. A turba de desencarnados, em posição de
desequilíbrio, era talvez cinco vezes maior que a assembleia de crentes em
carne e osso. Compreendi, logo, que em maior parte ali se achavam com o
propósito deliberado de perturbar e iludir.
Saldanha encontrava-se excessivamente
preocupado com as vítimas, para dispensar-nos maior atenção e,
intencionalmente, Gúbio afastou-se um tanto, em nossa companhia, a fim de
confiar-nos alguns esclarecimentos. Penetramos o templo onde se comprimiam nada
menos de sete a oito centenas de pessoas.
A algazarra dos desencarnados ignorantes e
perturbadores era de ensurdecer. A atmosfera pesava. A respiração fizera-se me
difícil pela condensação dos fluidos semi-carnais ali reinantes; todavia, ao
fixar os altares, confortante surpresa aliviou-me o coração.
Dos adornos e objetos do culto emanava doce
luz que se espraiava pelos cimos da nave visitada de sol; fazia-se perceptível
a nítida linha divisória entre as energias da parte inferior do recinto e as do
plano superior. Dividiam-se os fluidos, à maneira de água cristalina e azeite
impuro, num grande recipiente.
Contemplando a formosa claridade dos nichos,
perguntei ao nosso Instrutor: Que vemos? não reza o segundo mandamento, trazido
por Moisés, que o homem não deve fazer imagens de escultura para representar a
Paternidade Celeste? Sim, concordou o orientador, e determina o Testamento que
ninguém se deve curvar diante delas.
Efetivamente, pois, André, é um erro criar
ídolos de barro ou de pedra para simbolizar a grandeza do Senhor, quando nossa
obrigação primordial é a de render-lhe culto na própria consciência;
entretanto, a Bondade Divina é infinita e aqui nós achamos perante apreciável
quantidade de mentes infantis. E sorrindo, acrescentou:
Quantas vezes, meu amigo, a criança acalenta
bibelôs, a fim de preparar-se convenientemente para as responsabilidades da
vida madura. Ainda existem na Terra tribos primitivas que adoram o Pai na voz
do trovão e coletividades vizinhas da taba que fazem de vários animais objeto
de idolatria. Nem por isso o Senhor as abandona.
A aquisição de fé, por isto mesmo, demanda
trabalho individual dos mais persistentes. A confiança no bem e o entusiasmo de
viver que a luz religiosa nos infunde modificam-nos a tonalidade vibratória.
Lucramos infinitamente com a imersão das forças interiores no sublimado
idealismo da crença santificante, a que nos afeiçoamos; todavia, o serviço real
que nos cabe não se resume só a palavras.
A profissão de fé não é tudo. A experiência
da alma no corpo denso destina-se, de maneira fundamental, ao aprimoramento do
indivíduo. É nos atritos da marcha que o ser se desenvolve, se apura e ilumina.
Não obstante, a tendência dos crentes, em geral, é a de fugir aos conflitos da
senda.
Compilado por Harmonia Espiritual
Do Livro: Libertação
André Luiz (espírito) e Francisco Cândido
Xavier