Após
a travessia de várias regiões, “em descida”, com escalas por diversos postos e
instituições socorristas, penetramos vasto domínio de sombras. A claridade
solar jazia diferençada. Fumo cinzento cobria o céu em toda a sua extensão. A
volitação fácil se fizera impossível.
A
vegetação exibia aspecto sinistro e angustiado. As árvores não se vestiam de
folhagem farta e os galhos, quase secos, davam a ideia de braços erguidos em
súplicas dolorosas. Aves agoureiras, de grande tamanho, de uma espécie que
poderá ser situada entre os corvídeos crocitavam em surdina, semelhando-se a
pequenos monstros alados espiando presas ocultas.
O
que mais contristava, porém, não era o quadro desolador, mais ou menos
semelhante a outros de meu conhecimento, e, sim, os apelos cortantes que
provinham dos charcos. Gemidos tipicamente humanos eram pronunciados em todos
os tons.
Acredito,
teríamos examinado individualmente os sofredores que aí se localizavam, se nos
entregássemos a detida apreciação; todavia, Gúbio, à maneira de outros
instrutores, não se detinha para atender a curiosidade improfícua. Lembrando a
“selva escura” a que Alighieri se reporta no imortal poema, eu trazia o coração
premido de interrogativas inquietantes.
Aquelas
árvores estranhas, de frondes ressecadas, mas vivas, seriam almas convertidas
em silenciosas sentinelas de dor, qual a mulher de Lot, transformada simbolicamente
em estátua de sal? E aquelas grandes corujas diferentes, cujos olhos brilhavam
desagradavelmente nas sombras, seriam homens desencarnados sob tremendo castigo
da forma? Quem chorava nos vales extensos de lama? Criaturas que houvessem
vivido na Terra que recordávamos, ou duendes desconhecidos para nós?
De
quando em quando, grupos hostis de entidades espirituais em desequilíbrio nos
defrontavam, seguindo adiante, indiferentes, incapazes de registrar-nos a
presença. Falavam em alta voz, em português degradado, mas inteligível,
evidenciando, pelas gargalhadas, deploráveis condições de ignorância.
Apresentavam-se em trajes bisonhos e conduziam apetrechos de lutar e ferir.
Avançamos
mais profundamente, mas o ambiente passou a sufocar-nos. Repousamos, de algum
modo, vencidos de fadiga singular, e Gúbio, depois de alguns momentos, nos
esclareceu: Nossas organizações perispiríticas, à maneira de escafandro
estruturado em material absorvente, por ato deliberado de nossa vontade, não
devem reagir contra as baixas vibrações deste plano.
Estamos
na posição de homens que, por amor, descessem a operar num imenso lago de lodo;
para socorrer eficientemente os que se adaptaram a ele, são compelidos a
cobrir-se com as substâncias do charco, sofrendo-lhes, com paciência e coragem,
a influenciação deprimente.
Atravessamos
importantes limites vibratórios e cabe-nos entregar a forma exterior ao meio
que nos recebe, a fim de sermos realmente úteis aos que nos propomos auxiliar.
Finda a nossa transformação transitória, seremos vistos por qualquer dos
habitantes desta região menos feliz.
A
oração, de agora em diante, deve ser nosso único fio de comunicação com o Alto,
até que eu possa verificar, quando na Crosta, qual o minuto mais adequado de
nosso retorno aos dons luminescentes. Não estamos em cavernas infernais, mas
atingimos grande império de inteligências perversas e atrasadas, anexo aos
círculos da Crosta, onde os homens terrestres lhes sofrem permanente
influenciação. Chegou para nós o momento de pequeno testemunho.
Muita
capacidade de renúncia é indispensável, a fim de alcançarmos nossos fins.
Podemos perder por falta de paciência ou por escassez de vocação para o
sacrifício. Para a malta de irmãos retardados que nos envolverá, seremos
simples desencarnados, ignorantes do próprio destino. Passamos a inalar as
substâncias espessas que pairavam em derredor, como se o ar fosse constituído
de fluidos viscosos.
Elói
estirou-se, ofegante, não obstante experimentar, por minha vez, asfixiante
opressão, busquei padronizar atitudes pela conduta do Instrutor, que tolerava a
metamorfose, silencioso e palidíssimo. Reparei, confundido, que a voluntária
integração com os elementos inferiores do plano nos desfigurava enormemente.
Pouco
a pouco, sentimo-nos pesados e tive a ideia de que fora, de improviso,
religado, de novo, ao corpo de carne, porque, embora me sentisse dono da
própria individualidade, me via revestido de matéria densa, como se fosse
obrigado a envergar inesperada armadura.
Decorridos
longos minutos, o orientador apelou, diligente: Prossigamos! Doravante, seremos
auxiliares anônimos. Não nos convém, por enquanto, a identificação pessoal. Mas,
não será isto mentir? Clamou Elói, quase refeito. Gúbio dividiu conosco um
olhar de benevolência e explicou, bondoso:
—
Não te recordas do texto evangélico que recomenda não saiba a mão esquerda o
que dá a direita? Este é o momento de ajudarmos sem alarde. O Senhor não é
mentiroso quando nos estende invisíveis recursos de salvação, sem que lhe
vejamos a presença. Nesta cidade sombria, trabalham inúmeros companheiros do
bem nas condições em que nós achamos.
Se
erguermos bandeira provocante, nestes campos, nos quais noventa e cinco por
cento das inteligências se encontram devotadas ao mal e à desarmonia, nosso
programa será estraçalhado em alguns instantes. Centenas de milhares de
criaturas aqui padecem amargos choques de retorno à realidade, sob a vigilância
de tribos cruéis, formadas de espíritos egoístas, invejosos e brutalizados.
Para
a sensibilidade medianamente desenvolvida, o sofrimento aqui é inapreciável. E
há governo estabelecido num reino estranho e sinistro quanto este? — Indaguei.
Como não? — Respondeu Gúbio, atenciosamente. Qual ocorre na esfera carnal, a
direção, neste domínio, é concedida pelos Poderes Superiores, a título
precário.
Na
atualidade, este grande empório de padecimentos regenerativos permanece dirigido
por um sátrapa de inqualificável impiedade, que aliciou para si próprio o
pomposo título de Grande Juiz, assistido por assessores políticos e religiosos
tão frios e perversos quanto ele mesmo. Grande aristocracia de gênios
implacáveis aqui se alinha, senhoreando milhares de mentes preguiçosas,
delinqüentes e enfermiças.
E
porque permite Deus semelhante absurdo? Dessa vez, era o meu colega que
perguntava, de novo, semi apavorado, agora, ante os compromissos que
assumíramos. Longe de perturbar-se, Gúbio replicou: Pelas mesmas razões
educativas através das quais não aniquila uma nação humana quando, desvairada
pela sede de dominação, desencadeia guerras cruentas e destruidoras, mas a
entrega à expiação dos próprios crimes e ao infortúnio de si mesma, para que
aprenda a integrar-se na ordem eterna que preside à vida universal.
De
período a período, contado cada um por vários séculos, a matéria utilizada por
semelhantes inteligências é revolvida e reestruturada, qual acontece nos
círculos terrenos; mas se o Senhor visita os homens pelos homens que se
santificam, corrige igualmente as criaturas por intermédio das criaturas que se
endurecem ou bestializam.
Significa
então que os gênios malditos, os demônios de todos os tempos — exclamei,
reticencioso — Somos nós mesmos — completou o Instrutor, paciente, quando nos
desviamos, impenitentes, da Lei. Já perambulamos por estes sítios sombrios e
inquietantes, mas os choques biológicos do renascimento e da desencarnação,
mais ou menos recentes, não te permitem, nem a Elói, o desabrocho de
reminiscências completas do passado.
Comigo,
porém, a situação é diversa. A extensão de meu tempo, na vida livre, já me
confere recordações mais dilatadas e, de antemão, conheço as lições que
constituam novidade. Muitos de nossos companheiros, guindados à altura, não
mais identificam nestas paragens senão motivos de cansaço, repugnância e pavor;
todavia, é forçoso observar que o pântano, invariavelmente, é uma zona da
natureza pedindo o socorro dos servos mais fortes e generosos.
Música
exótica fazia-se ouvir não distante e Gúbio rogou-nos prudência e humildade em
favor do êxito no trabalho a desdobrar-se. Reerguemo-nos e avançamos. Fizera-se
nos tardio o passo e nossa movimentação difícil. Em voz baixa, o orientador reiterou a
recomendação: Em qualquer constrangimento íntimo, não nos esqueçamos da prece.
É, de ora em diante, o único recurso de que dispomos a fim de mobilizar nossas
reservas mentais superiores, em nossas necessidades de reabastecimento
psíquico.
Qualquer
precipitação pode arrojar-nos a estados primitivistas, lançando-nos em nível
inferior, análogo ao dos espíritos infelizes que desejamos auxiliar. Tenhamos
calma e energia, doçura e resistência, de ânimo voltado para o Cristo. Lembremo-nos
de que aceitamos o encargo desta hora, não para justiçar e sim para educar e
servir.
Adiantamo-nos,
caminho a fora, como se fazia possível. Em minutos breves, penetramos vastíssima
aglomeração de vielas, reunindo casario decadente e sórdido. Rostos horrendos
contemplavam-nos furtivamente, a princípio, mas, à medida que varávamos o
terreno, éramos observados, com atitude agressiva, por transeuntes de miserável
aspecto.
Alguns
quilômetros de via pública, repletos de quadros deploráveis, desfilaram a
nossos olhos. Mutilados às centenas, aleijados de todos os matizes, entidades
visceralmente desequilibradas, ofereciam-nos paisagens de arrepiar. Impressionado
com a multidão de criaturas deformadas que se enfileiravam sob nosso raio
visual, perfeitamente arrebanhadas ali em experiência coletiva, enderecei
algumas interrogações ao Instrutor, em tom discreto.
Porque
tão extensa comunidade de sofredores? Que causas impunham tão flagrante
decadência da forma? Paciente, o orientador não se fez demorado na resposta. Milhões
de pessoas — informou, calmo —, depois da morte, encontram perigosos inimigos
no medo e na vergonha de si mesmas. Nada se perde, André, no círculo de nossas
ações, palavras e pensamentos.
O
registro de nossa vida opera-se em duas fases distintas, perseverando no exterior,
através dos efeitos de nossa atuação em criaturas, situações e coisas, e
persistindo em nós mesmos, nos arquivos da própria consciência, que recolhe
matematicamente todos os resultados de nosso esforço, no bem ou no mal, ao
interior dela própria.
O
espírito, em qualquer parte, move-se no centro das criações que desenvolveu.
Defeitos escuros e qualidades louváveis envolvem-no, onde se encontre. A
criatura na Terra, por onde peregrinamos, ouve argumentos alusivos ao Céu e ao
Inferno e acredita vagamente na vida espiritual que a espera, além-túmulo.
Mais
cedo que possa imaginar, perde o veículo de carne e compreende que não se pode
ocultar por mais tempo, desfeita a máscara do corpo sob a qual se escondia à
maneira da tartaruga dentro da carapaça. Sente-se tal qual é e receia a
presença dos filhos da luz, cujos dons de penetração lhe identificariam, de
pronto, as mazelas indesejáveis.
O
perispírito, para a mente, é uma cápsula mais delicada, mais suscetível de
refletir-lhe a glória ou a viciação, em virtude dos tecidos rarefeitos de que
se constitui. Em razão disso, as almas decaídas, num impulso de revolta contra
os deveres que nos competem a cada um, nos serviços de sublimação, aliam-se
umas às outras através de organizações em que exteriorizam, tanto quanto
possível, os lamentáveis pendores que lhes são peculiares, não obstante
ferretoadas pelo aguilhão das inteligências vigorosas e cruéis.
Não
há recursos de soerguer semelhantes comunidades? A mesma lei de esforço próprio
funciona igualmente aqui. Não faltam apelos santificantes de Cima; contudo, com
a ausência da íntima adesão dos interessados ao ideal da melhoria própria, é
impraticável qualquer iniciativa legítima, em matéria de reajustamento geral.
Sem
que o espírito, senhor da razão e dos valores eternos que lhe são consequentes,
delibere mobilizar o patrimônio que lhe é próprio, no sentido de elevar o seu
campo vibratório, não é justo seja arrebatado, por imposição, a regiões
superiores que ele mesmo, por enquanto, não sabe desejar.
E
até que resolva atirar-se ao empreendimento da própria ascensão, vai sendo
aproveitado pelas leis universais no que possa ser útil à Obra Divina. A
minhoca, enquanto é minhoca, é compelida a trabalhar o solo; o peixe, enquanto
é peixe, não viverá fora d’água. Sorrindo, ante a própria argumentação,
concluiu bem-humorado: É natural, pois, que o homem, dono de vastas teorias de
virtude salvadora, enquanto se demora no comboio da inferioridade seja
empregado em atividades inferiores.
Quase
todas as almas humanas, situadas nestas furnas, sugam as energias dos
encarnados e lhes vampirizam a vida, qual se fossem lampreias insaciáveis no
oceano do oxigênio terrestre. Suspiram pelo retorno ao corpo físico, de vez que
não aperfeiçoaram a mente para a ascensão, e perseguem as emoções do campo
carnal com o desvario dos sedentos no deserto.
Quais
fetos adiantados absorvendo as energias do seio materno, consomem altas
reservas de força dos seres encarnados que as acalentam, desprevenidos de
conhecimento superior. Daí esse desespero com que defendem no mundo os poderes
da inércia e essa aversão com que interpretam qualquer progresso espiritual ou
qualquer avanço do homem na montanha de santificação.
No
fundo, as bases econômicas de toda essa gente residem, ainda, na esfera dos homens
comuns e, por isto, preservam, apaixonadamente, o sistema de furto psíquico,
dentro do qual se sustentam, junto às comunidades da Terra.
Compilado
do livro: Libertação
Autor:
André Luiz (espírito) e Francisco Cândido Xavier