Autoconhecimento

Santo Agostinho e o autoconhecimento
Assim como sei que sou, sei também que me conheço.
Agostinho – Astrid Sayegh

Toda a trajetória humana consiste em uma busca progressiva de respostas, na qual o homem procura superar a si mesmo em meio aos conflitos existenciais em direção à almejada verdade libertadora. Efetivamente, importa em um primeiro momento questionar: como se chegar a essa verdade? E ainda, o que é a verdade?

Ao se questionar qual o meio prático mais eficaz para se melhorar nesta vida e resistir ao arrastamento do mal, Santo Agostinho responde em “O Livro dos Espíritos”: Um sábio da Antigüidade vos disse: “Conhece-te a ti mesmo”. Tal aforismo, já inscrito no oráculo de Delfos, nos leva inicialmente a entender que a libertação e alegria do Espírito não consistem em um estado, mas em um processo de busca da verdade em si mesmo, o qual define-se, consoante a pedagogia socrática, em dois momentos: “a ironia e a maiêutica”.


Através da “ironia”, ou arte da interrogação, Sócrates levava o discípulo a afastar toda idéia falsa ou ilusão que tivesse do mundo e sobre si mesmo, induzindo-o a chegar à verdade por si mesmo. Tal procedimento visa inicialmente pôr a descoberto a vaidade, desmascarar a impostura e seguir a verdade.

Ao atacar os cânones oficiais, a ironia socrática parece ter uma feição negativa e revolucionária, no entanto, esse primeiro momento do processo de autoconhecimento é autêntico, uma vez que visa à purificação da alma por via da expulsão de idéias obscuras e ilusórias que esta possui sobre si e que na verdade distanciam a alma de si mesma.

A melhor maneira de promover o auto aperfeiçoamento, afirma Sócrates, é por meio do auto-exame, e é apenas através deste reencontro consigo mesmo que se torna possível o renascer da própria consciência, a parturição, ou seja, o trazer à luz as próprias idéias. Apenas aquilo que é decidido de dentro para fora é autêntico e pode nos libertar. Efetivamente, a posse da verdade consiste em uma operação não apenas vital, mas pessoal, em que a forma interrogativa ou dialética permite ao discípulo relembrar a verdade adormecida em sua alma.

É assim que Agostinho de Hipona nos descreve o itinerário dessa busca de autoconhecimento diante de tantos conflitos existenciais que afligiam sua alma quando, dilacerado pelas vaidades e paixões, desperta para as verdades cristãs.

Em Tagaste, entrega-se à vida monástica e, nessa ocasião, escreve “Confissões”, obra na qual dedica-se a perscrutar o abismo da consciência humana, mas o faz também em sua própria consciência. Agostinho inicia assim essa trajetória inicialmente conflitante buscando estabelecer a distinção entre “o bem e o mal”, para então inverter seu olhar da realidade mundana à interioridade, em uma conversão de valores.

Da mesma forma, Allan Kardec questiona aos Espíritos como o progresso intelectual pode conduzir ao progresso moral, ao que respondem: “dando a compreensão do bem e do mal, pois então o homem pode escolher”. Percebe-se deste modo, no itinerário do filósofo intelectual ao religioso, a importância do raciocínio analítico que necessita distinguir o bem e o mal, para então, através do livre arbítrio, iniciar pela via ascendente da verdade.

Por verdade, da mesma forma que a Filosofia Espírita, Agostinho afirma o bem como a única realidade positiva, na medida em que o mal consiste em uma privação, decorrente do mau uso da liberdade: “procurei o que é o mal, e verifiquei que não é substância, mas perversidade de uma vontade que se afasta da substância suprema” — de Vós, meu Deus — na direção das coisas inferiores.

Se Sócrates nos trouxe, pela primeira vez na história do pensamento, um método de conhecimento que daria origem à autoridade da ciência e a autenticidade dos valores morais, já Agostinho que, sem dúvida recomendou esse método, foi quem na verdade explorou essa busca de interioridade e a exemplificou em si mesmo, pois sempre buscou mergulhar dentro de si e conscientizar-se de seus erros e defeitos, conforme expõe de forma autêntica em Confissões:

“Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus. É por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros”.

Efetivamente, após tantos conflitos interiores, o bispo de Hipona busca esse auto-exame de seu passado, busca essa interrogação ou ironia socrática, questionando a si mesmo, não por alguma motivação exterior a si, mas antes como uma forma de amar e exaltar a Deus. Como amar a Deus plenamente sem uma libertação da própria consciência que se julga? Eis aqui a moral autônoma que nos ensina a pedagogia espírita, na medida em que o Espírito se auto-legisla, visando uma libertação da sua própria consciência.

Daí o papel decisivo da memória no processo de autoconhecimento, pois é na memória que eu me encontro comigo mesmo, escreve Agostinho, que me lembro de mim mesmo, as coisas que fiz, a época e do lugar em que as fiz, do que sentia ao fazê-las.

O despertar para o amor impele Agostinho à sinceridade consigo próprio e para com Deus, pois à medida que o ser eleva-se moralmente, não mais se satisfaz em enganar a si mesmo. Por isso, quando resignados e elevados, a visão do passado constrangedor pede por manifestar-se como uma forma de libertar-se a si mesmo.

A consciência autônoma só se liberta quando depara consigo mesma e se aceita. Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, afirma o amoroso mestre. O amor a Deus é impossível sem a autenticidade da alma para consigo mesma. Não basta à consciência a recompensa exterior farisaica. Recordar primeiramente consiste em apresentar-se à deusa do passado, segundo alegoria platônica, para então viver um presente consciente em função do futuro libertador.

“A recordação é amarga, afirma Agostinho, mas espero sentir tua doçura, doçura que não engana, feliz e segura, e quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos interiores que sofri quando me perdi em tantas bagatelas, ao afastar-me de tua Unidade”.

Ao infringir o senso moral, à lei imanente ao Espírito, é como se nos distanciássemos da verdade, é como se dilacerássemos, pela vaidade, torpezas e conflitos interiores, a unidade do amor que caracteriza a nossa essência. E esse rompimento com a unidade desvia o Espírito de sua natureza substancial, dispersando-o na contemplação exaustiva do mundo sensível.

É assim que Jesus já exaltara essa unidade, antes de partir para seus derradeiros momentos, quando ora ao Pai para que todos sejam Um com ele. A empatia feliz, a doce comunhão em espírito, com o Pai e com o próximo, eis o sentido definitivo da existência. Eis a oração do amoroso mestre pela união de todos os homens de fé em Deus:

“Para que todos sejam um, assim como tu, Pai estás em mim e eu em ti para que também eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me destes, para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim”.

Esta consciência da unidade só pode se dar na plenitude do Espírito que ama e que, portanto transcende a dilaceração do homem velho, segundo palavras de apóstolo Paulo, alienado de si pelas coisas do mundo. Nesse contato com o espírito imanente que vivifica, o ser é arrebatado por uma necessidade irresistível de comungar elevados sentimentos com Deus e com o outro.

A simpatia dos Espíritos entre si é possível pelo fato de todos se identificarem em natureza, porquanto possuem a mesma origem: “o Ser único, uno e universal”. A unidade mantém a força de atração, e nessa atração revela-se a lei do amor, sublime imperativo, que quando vivenciado plenamente há de substituir a personalidade pela fusão dos seres. Amar a Deus e ao próximo é alegrar-se pela vivência da unidade em espírito. Aquele que se une ao Senhor torna-se um só espírito com ele.

Plotino, cujo pensamento muito influenciou Agostinho, já exaltara a missão própria da alma: “restabelecer a unidade original das coisas, reconduzindo-as todas ao Um”. As etapas desse processo de retorno consistem na ascese, na qual, em um primeiro momento a alma liberta-se dos sentidos pelo exercício da virtude.

Em um segundo momento a “contemplação”, que consiste no conhecimento do Um mediante a filosofia. E por último o êxtase, onde a alma supera o conhecimento filosófico, no ato de contemplar o Um ela é tomada de uma alegria inefável. Se considerarmos ainda o ponto de vista da religiosidade espírita, essa unidade, porém não é estática, nem meramente quantitativa, mas varia segundo o grau evolutivo, qualitativo do Espírito; quanto maior o grau de pureza, quanto mais expressiva a moralidade, maior a coesão entre os indivíduos.

A visão meramente contemplativa não basta para a identificação com o Ser, pois o Espírito consiste em uma natureza dinâmica, criativa, e nesse contato autêntico com a unidade o indivíduo se vê impelido a exteriorizá-la, a gerar, a criar, a doar, pela força de todas as forças, a força de coesão do amor. Eis a caridade então, como forma desta unidade manifestar-se na pluralidade de seres. Desta forma é na comunhão interior com os demais seres que nós, Espíritos particulares revelamos, comungamos na unidade do espírito universal, mas como consciências ativas e perenes.

Com efeito, o célebre “Conhece-te a ti mesmo” não consiste apenas na consciência de erros, defeitos e limitações; conhece-te a ti mesmo no que possuis de infinito, ou de potencialidades da verdade divinal que te habita. Eis a maiêutica. O trazer à luz a interioridade, não apenas como um meio, mas o fim último do autoconhecimento.

Adotando a concepção platônica, retomada por Plotino, Agostinho considera as sensações como insuficientes, por nos revelarem o particular e o contingente, o que não pode ser objeto do verdadeiro conhecimento, ao passo que a alma encontra em si mesma o universal e o necessário, o puramente inteligível. Se não provém das sensações, como explicar a presença na alma de tais verdades, imutáveis e eternas?

Sem dúvida, também para o bispo de Hipona, assim como para a Filosofia Espírita, pode-se chegar a Deus mediante os índices cosmológicos, por exemplo, através da ordem do Universo e da contingência das coisas: “a harmonia que regula as forças do Universo revela combinações e fins determinados, e por isso mesmo um poder inteligente”. Mas Agostinho, assim como a Revelação Espírita, encontra indícios muito mais sugestivos da verdade no homem do que no mundo. Ele não procura a solução dos problemas filosóficos na realidade externa, como o fizera Aristóteles e toda a filosofia grega, mas no exame da própria alma.

O que dá originalidade e unidade à sua solução é a perspectiva na qual ele considera os problemas existenciais, perspectiva que é essencialmente interior. Seu princípio inspirador é o seguinte: Noli foras ire, in teisum redi, in interiore homine habitat veritas (não saias de ti, volta-te para ti mesmo, a verdade habita no homem interior). E o que é essa verdade para o autor de Confissões? A verdade para Agostinho, não provém do mundo exterior; enquanto imutável e eterna, é o próprio Deus — Cumpre exaltar aqui a eternidade e imutabilidade como sendo, do mesmo modo, atributos da divindade para a Filosofia Espírita. Ao mesmo tempo imanente e transcendente ao homem, Deus só pode ser encontrado no íntimo de cada ser, ao longo de um itinerário, como se vê nas Confissões, que conduz do exterior ao interior, e do interior ao superior.

Inefável, indizível, Deus é aquele que é (ego sum qui sum), a essência ou substância, o ser que é sempre e plenamente aquilo que é. É desta forma que a leitura dos platônicos leva Agostinho a buscar no próprio íntimo a verdade transcendental:

“Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no íntimo de meu coração sob tua guia, e o consegui, porque tu te fizeste meu auxílio. Entrei e com os olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável (...). Era como se brilhasse muito mais clara e tudo abrangesse com sua grandeza. Não era uma luz como esta, mas totalmente diferente das luzes desta terra. Também não estava acima de minha mente como o óleo sobre a água nem como o céu sobre a terra, mas acima de mim porque ela me fez, e eu abaixo porque fui feito por ela. Quem conhece a verdade conhece esta luz, e quem a conhece, a eternidade. O amor a conhece. Ó eterna verdade, verdadeira caridade e querida eternidade!”

Depreende-se de tal evocação que para Agostinho o conhecimento das verdades eternas é obtido por meio da “iluminação” divina e não por meio da reminiscência. Como não admite a preexistência da alma não lhe é possível explicar o conhecimento das verdades eternas senão pela doutrina da iluminação. Sem a iluminação, é possível conhecer a lei, mas é impossível praticá-la ou cumpri-la. A graça, porém, não elimina a liberdade, mas a restaura em sua eficácia, tornando-a capaz de fazer o bem e evitar o mal.

A espiritualidade da alma consiste na busca consciente da substância divina em si mesmo, em transcender os sentidos materiais em busca de um sentido espiritual: a visão interior; a luz a que se refere Agostinho consiste na graça divinal, e que incide na própria alegria do sentimento moral, do amor. Nesta visão o Espírito confunde-se com a própria luz geradora, conforme alegoria platônica, da qual torna-se a própria manifestação; não se sabe mais se é o sol exterior à caverna ou se é o si mesmo, se sou Eu ou a essência divinal: “Não credes que estou no Pai, e que o Pai está em mim?”. Nesta unidade identificam-se ainda os Espíritos superiores, sob cuja égide vivemos: “já não sou eu, mas o Cristo que habita em mim, afirma ainda Paulo”.

Se para as várias religiões Deus é um ser transcendental, já a Doutrina Espírita exalta antes a imanência de Deus na criação, mensagem fundamental do cristianismo: “Não sabeis que sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?”. O espírito divino, enquanto verdade eterna e imutável, habita, desta forma no templo de interioridade de cada um. É possível sim chegar a essa verdade, mas por uma auto-iluminação, esforço e conquista interior. Cada Espírito é uma expressão, um modo de ser da presença divina.

Essa imanência revela-se para a consciência que transcende religiosamente, em forma de contentamento interior, pela consciência imediata da Presença interna. Daí a alegria interior dos Espíritos nobres, de perceber-se amando, de sentir-se como vivência do espírito divino, no qual somos e existimos, fazemos parte e manifestamos. Essa religiosidade libertadora, portanto, consiste em trazer à luz a verdade, conforme já afirmara o mestre da Antiguidade, temporariamente oculta, tornando-a visível ao Espírito, pela própria luminosidade interior.

A espiritualidade da alma é, pois, confirmada pelo que ela conhece de si mesma. Quando a alma conhece a si mesma, descobre não apenas seus defeitos, mas que é uma substância divinal individuada, e que enquanto tal está em íntima relação com a verdade. Vemos assim a trajetória de Agostinho, um homem que amou e sofreu, conheceu o tormento da dúvida e do remorso, que conheceu todas as situações limite que caracterizam a condição humana.


Ao mesmo tempo revela-se no filósofo que escrevia com a alma ardente, um religioso que venceu a si mesmo, um Espírito fervoroso e apaixonado, cujo testemunho nos é um exemplo que nos ilumina, que nos aquece interiormente. Eis assim as Confissões, obra sempre atual, e que fala não só da experiência gloriosa de Agostinho, mas de todos nós no itinerário do erro à verdade, da busca de si mesmo e de Deus.