À procura de sentido entre os desencaixes sociais do
século XX e o vazio existencial do homem contemporâneo
O comportamento humano, na sua complexidade, se vê afetado por
diferentes vetores. Num momento são os vetores familiares, como um pai amoroso ou negligente, uma
mãe autoritária ou respeitadora das iniciativas dos filhos; noutros momentos são os vetores orgânicos, somados aos impositivos genéticos,
biológicos, predispondo à harmonia ou à distonias pré-programadas desde o
momento da concepção.
Somados a estes vetores, ainda temos a incidir sobre o
comportamento de homens e mulheres os fatores antropológicos, aqueles que dizem respeito às
nossas heranças originadas dos traços de culturas específicas, que reúnem os indivíduos em comunidades
que sobrevivem ao tempo. Ao lado e em interação com os demais, aparecem os fatores espirituais
originados antes mesmo da concepção, ora incidindo como fontes de bem-estar, de harmonia e
equilíbrio, ora como fontes de desditas de difícil resolução.
Neste amplo espectro de influências, sem dúvida, não poderiam faltar dentre os
determinantes externos que incidem sobre a esfera comportamental os
condicionamentos sociais. Estes respondem pelas alterações estruturais da sociedade, de
tempos em tempos, pelas mudanças econômicas, pelas modificações na forma de
pensar da coletividade, a constituir novas subjetividades, as quais interferem
e noutras vezes determinam o comportamento individual.
As alterações sociais, dessa forma, se fazem elementos muito importantes
em uma dada época e período da evolução humana, podendo ser fonte de otimismo e
esperança ou, então, devido às crenças cultivadas, as idéias e discursos
preponderantes, serem fontes de pessimismo e de desânimo para homens e mulheres
de um dado momento histórico.
1.0 - Os desencaixes sociais a anunciar a crise: No início do século XX, uma série de
transformações sociais abalaram fortemente as estruturas da sociedade moderna,
na qual a ordem era uma de suas principais características. De um lado, as tradições perderam
quase que completamente sua capacidade de moldar comportamentos, rompendo-se o fio que ligava antigas e
novas gerações.
De outro, a religião se via fragilizada por não acompanhar os avanços
científicos e, assim, perdera sua credibilidade frente aos indivíduos mais
críticos, dispostos à submeter
tudo e qualquer coisa ao crivo da razão. Como afirmou Imanuel Kant, o homem deveria “ousar pensar por si
mesmo”, e assim libertar-se
das imposições que limitavam as escolhas individuais.
Dois fortes pilares, dessa forma, os quais sustentavam as criaturas há
milênios, desmoronaram sob os olhos perplexos de toda a sociedade. A tradição trazia a dimensão da
autoridade, do respeito aos saberes elaborados no passado, como os
conhecimentos, as crenças e os valores que deveriam guiar os mais novos em um
mundo desconhecido e pré-existente a eles.
Esse laço – “entre o velho e o novo” -
fora rompido, como se a razão prescindisse de orientações daqueles que já
habitavam esse mundo. Por sua vez, a fé e os valores dela decorrentes foram
desacreditados pelo novo espírito positivista de Augusto Comte, para quem a
ciência deveria ser a guia infalível da humanidade.
Todo o conhecimento verdadeiro deveria ser o científico, submetido
a um vigor metodológico que excluía como falso tudo o que não pudesse ser
objetivamente pesquisado. A transcendência, dessa forma, a busca de uma ligação com Deus
fora abandonada, desacreditada e mesmo ridicularizada pelos homens da ciência,
novos detentores da verdade.
Novos desencaixes ainda
estavam para serem realizados, entre o início dos anos novecentos e a década de
1970, operando mudanças sociais bruscas frente à antiga estrutura social que
amparava o homem moderno.
Até aquele momento, as instituições sociais eram mais duradouras que o próprio
ciclo biológico humano, proporcionando para o indivíduo da modernidade uma percepção de
ordem no mundo, de estabilidade. Ele sentia-se seguro para elaborar um projeto
de vida individual, pois sabia que o bem estar coletivo estava assegurado pelo caráter perene
de tudo que o cercava, como as instituições financeiras, escolares, hospitais e tantas
outras, as quais ofereciam a ele a possibilidade de uma carreira e a aquisição de
uma identidade sólida e irremovível por toda a vida.
A construção de uma identidade, assim, processo necessário ao
desenvolvimento psicológico, era algo desejável e sempre atrelado a um
determinado setor da sociedade, e jamais separado desta. Os projetos de vida individuais - de longo prazo - eram então
possíveis, e estavam simbolizados pelas “cadernetas de poupança”, que ofereciam a garantia do alcance das
metas estabelecidas em um mundo onde a ordem imperava e a incerteza apenas se
dava, praticamente, em relação às intempéries da natureza.
Mesmo após a Segunda Guerra Mundial, essa ordem ainda preponderava.
Com o chamado “Estado de Bem-Estar Social”, medidas governamentais que visavam recuperar os indivíduos
desempregados até que pudessem se reinserir no mercado de trabalho e
proporcionavam dignidade e conforto às famílias de soldados mortos foram tomadas, conciliando, assim, os
ganhos da acumulação do capital pelas grandes empresas com melhorias nas
condições de vida dos cidadãos.
Entretanto, o “Estado de Bem-Estar Social” passou a ser substituído
em inúmeros países, durante a década de 1970, impulsionados pela nova lógica de
mercado, por uma nova estruturação das economias nacionais. A regra, a partir de então, era
entregar antigas responsabilidades do Estado para a iniciativa privada, reduzindo, assim, o papel dos governos
como amortecedores das tensões sociais.
A competição de mercado e suas conseqüências é que garantiriam a
harmonia social. Algo, sem dúvida, que não ocorreu, como atesta o sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, em “O Mal-Estar da Pós-Modernidade” (1998). Trata-se, aqui, não de um fenômeno
político, ligado a questões partidárias, mas de um fenômeno estrutural na
configuração da sociedade.
De um momento para outro, tudo o que antes parecia imperecível, como as instituições
públicas mais respeitáveis, passaram a ruir, desmoronar diante dos fracassos
econômicos ocasionados pela competição de mercado. Ocupações e profissões, que até então
sobreviviam a seus titulares, agora se tornavam instáveis: passaram a
inexistir cargos confiáveis e tampouco perícias que não pudessem ser
substituídas ou tornadas obsoletas.
Os diversos desencaixes operados desde o início da modernidade
estavam chegando a seu apogeu: as tradições estavam mortas, apenas mantendo uma
superficialidade de ritos e comemorações, mas sem o conteúdo capaz de orientar
a chegada dos mais novos; as religiões, por sua vez, em completo descrédito, consideradas mais amarras a aprisionar
que auxiliares na superação dos embates da vida; e, agora, as próprias
instituições sociais, que formavam a paisagem de progresso de grandes e
pequenas cidades, não ofereciam mais segurança alguma.
2.0 - O discurso pós-moderno: Foi justamente nesse quadro de
pessimismo e desencantamento, que uma corrente de pensamento começou a tomar forma, representando a visão não apenas de um
autor, mas de vários intelectuais do mundo inteiro.
Já que as promessas da religião como guia não lograram o progresso
esperado; já que as correntes políticas com seus grandes discursos fracassaram
em proporcionar o avanço econômico e social de todos os cidadãos, erradicando a
miséria e a opressão, o melhor a fazer, defenderam esses autores, era abandonar
qualquer busca de consenso, qualquer idéia de progresso, ou seja, todo e
qualquer ideal de homem ou projeto de vida.
Essa corrente de pensamento, denominada: pós-modernidade passou a ser
defendida e propagada por intelectuais, publicitários, escritores, professores universitários de diversas partes do mundo, todos a
influenciar os rumos sociais das coletividades.
O pensamento pós-moderno nega a história e a idéia de que devemos buscar um
progresso coletivo comum. Não há mais valores universais e ninguém pode equiparar seu
comportamento ao de outro, já que cada qual possui seus parâmetros, os quais podem ser alterados de um
momento para outro. Assim, ser flexível
é a qualidade mais
estimulada, bem como não se ter uma identidade única, que mais atrapalharia dentro de um
mundo onde as exigências mudam a todo instante, de acordo com as necessidades
do mercado. Dessa forma, essa ótica mergulha os indivíduos em uma vida narcísica, onde a
meta de cada dia é viver o momento, “arriscar-se”.
O discurso pós-moderno em ação, por outro lado, pode ser visto no
comportamento das personagens de telenovelas e filmes, as quais geralmente não possuem valores ou quaisquer
parâmetros de referência, tudo vale para
o sucesso individual.
Pode ser visualizado, ainda, nos programas de televisão em que seus
apresentadores perderam o bom senso, através de reportagens e entrevistas que
mais chocam e denigrem o ser humano que o promovem. Aqui, pois, pode-se de fato constatar
que a falta ou inexistência do bom senso, em nossos dias, é o principal sintoma
da grave crise em que vivemos, como afirma Hannah Arendt, em sua obra “Entre o
Passado e o Futuro” (1992).
Diante de tal contexto social, os indivíduos passam a viver em um profundo estado de
incerteza. Por um lado, não
conseguem mais prever a configuração do mundo, o qual se altera a cada dia,
ameaçado por guerras, graves crises econômicas e mesmo pelas conseqüências
provocadas pela poluição.
De outro, não podem mais homens e mulheres prever o comportamento de amigos,
colegas de trabalho ou mesmo familiares, quando estes vivem dentro da ótica pós-moderna. Já que, dentro desta, não há leis, tudo vale, nenhuma regra
é estabelecida, e aquele ou aquela que dorme ao lado pode, repentinamente, e sem nenhum aviso,
pegar suas coisas e desaparecer sem deixar notícias.
Um tal estado de coisas, onde as criaturas se vêem dificultadas em
estabelecer projetos de vida individuais e metas a serem alcançadas, termina por gerar em milhares de
pessoas de nossos dias um profundo estado de “vazio existencial”.
3.0 - O vazio existencial na vida
contemporânea: O vazio existencial caracteriza-se por “um estado de tédio e por uma
incapacidade de pensar o futuro”. A pessoa não possui mais motivação e ânimo para
executar até mesmo tarefas habituais, entregando-se a um profundo abatimento
diante da existência.
Esse estado freqüentemente é confundido com as depressões tradicionais, como
a endógena, constituída pela
deficiência de determinados neurotransmissores do sistema nervoso central, e
com as depressões exógenas, provocadas por processos de luto, uma falha
pessoal, um fracasso profissional etc. Nem mesmo podemos igualar este estado às depressões
orgânicas, resultantes de lesões
cerebrais, operações cirúrgicas de tumores, processos degenerativos do cérebro.
O vazio existencial, na conceituação do psiquiatra vienense Viktor
Frankl, surge em
decorrência de uma falta de metas e objetivos que valham a pena serem
perseguidos durante a existência, ou seja, o indivíduo carece de um conteúdo
profundo pelo qual viver. Tal estado de vazio, amplia a angústia resultante de uma tensão
entre o que se é e o que se deveria ser, entre o lugar em que se está e a meta
que deve ser alcançada.
Esse campo de tensão, segundo Viktor Frankl, de forma alguma é
patológico, antes disso, é condição de saúde mental. Uma certa dose de tensão
em nossas vidas é saudável e necessária. O vazio existencial só irá se manifestar patologicamente
quando o indivíduo recusa-se a leitura de
seus sentimentos, quando nega-se a dar um resposta a esse estado de angústia,
que, em verdade, está lhe indagando sobre o sentido de sua vida.
Nesta direção, muitas criaturas buscam soterrar essa angústia através de psicofármacos e
outras formas de compensação da vontade de sentido existente dentro delas, como o sexo, o álcool e os alucinógenos,
o que não resolve o problema, sem dúvida, mas o agrava.
A busca por um sentido é a motivação primária na vida de qualquer
criatura. Sempre que essa
vontade de sentido está soterrada por uma vida ilusória, mesmo nas condições de
riqueza e bem estar material absolutos, a pessoa passa a sentir uma angústia
existencial dentro de si.
Quando o indivíduo mergulha no vazio existencial sem dele sair, ele
adentra em uma depressão
noogênica. Do grego (noos) espírito,
razão, inteligência, ou seja, uma depressão de gênese espiritual, acarretada porque o indivíduo não consegue enxergar as possibilidades
de sentido em sua existência.
Milhares de pessoas, vivendo existências superficiais e sem
conteúdo, tentam calar a
falta de sentido de suas vidas através
de festas ruidosas, de divertimentos intermináveis, pelos esportes radicais, os quais sempre deixam uma sensação de
insatisfação e a necessidade de nova busca de emoções fortes. Noutras vezes,
essa vontade de sentido que necessita ser preenchida é compensada pela vontade de poder,
através da tentativa de domínio de outras pessoas, ou em uma de suas formas
mais primitivas, a ganância de acumular dinheiro.
O vazio existencial pode ser percebido com clareza nos finais de semana, quando o
corre-corre do trabalho e das tarefas cessa, e o vazio dentro de homens e
mulheres se torna manifesto, denunciando a inexistência de um conteúdo profundo em suas vidas.
Sábados e Domingos se tornam insuportáveis, já que no lugar de
metas e aspirações nobres e plenificadoras, existe apenas o imediatismo carregado de ansiedade, a
busca tormentosa de se desfrutar prazerosamente o aqui e agora qualquer preço. Acaba por predominar em inúmeras criaturas, dessa forma, uma
sensação de vácuo interno,
como esclarece Joanna de Ângelis, em “Conflitos Existenciais” (2005).
4.0 - Reencontrando-se com as
possibilidades de sentido: As crises sociais, como percebemos, desencaixaram os indivíduos de todas as suas antigas redes
de proteção e referenciais: tradições, religião e instituições sociais. Chegou o momento de operarmos os reencaixes necessários. Com as pessoas, através de valores
edificantes compartilhados; com as instituições, através de um trabalho que
vise o bem comum; e com a religião, não mais com os dogmas do passado, mas com uma
espiritualidade autêntica, que nos reencontre com Deus.
Nesse processo, contudo, não se pode abdicar das metas, dos
objetivos artísticos, culturais, profissionais, afetivos ou solidários. Aquele que vive sem elas, ou se faz
displicente ante a necessidade de elaborá-las, vive na escuridão, à mercê dos
dias, do tempo, à um passo de um vazio profundo e do suicídio.
Torna-se imperioso, a visualização de possibilidades de sentido que
não estejam apenas configuradas no agora, mas também no futuro desejado por
nós. Assim, antes de
alcançarmos o ideal perseguido, realizações
prévias se fazem necessárias, como passos intermediários para o
triunfo de nossas aspirações. Embora o hoje não se apresente ainda exitoso, portanto, mesmo suas
dificuldades ou percalços constituem etapas, que ao serem superadas, tornam-se
valiosas para a conquista acalentada.
Aqui, pois, apresenta-se um novo desafio: compreender a transitoriedade de
nossa vida corporal, o seu espaço finito durante a encarnação, não como um
entrave para a realização de nossos projetos. Antes que uma barreira, nossa
impermanência nos revela que não é a vida que é transitória, passageira, já que somos espíritos imortais, mas
são as possibilidades de realização nela que são transitórias, tal como um fluxo que passa à nossa
frente e não mais retornará.
Cada qual tem uma tarefa a realizar, um sim a dizer à vida, como se
estivesse diante de um bloco de mármore, de onde podemos extrair diversas
espécies de configurações, tal qual o artista a escolher a obra de arte que
deixará no mundo, como co-criador da obra de Deus. Para isso, contudo, é necessário que ouçamos nosso senso
interior, o nosso deus interno,
a voz que nos diz a direção e o sentido a seguir “libertando-nos”, pois, das
vozes autoritárias e daquelas que desejam nos conformar ao comum, à mesmice, ao
já fruído. Isto porque cada um
possui em si uma potencialidade única, uma tarefa à espera e para a qual não
possui substitutos.
Quais dessas possibilidades de
realização serão condenadas ao não-ser, a nunca terem existido, pela nossa
inércia, devido a nossa preguiça mental e comodismo? E quais delas se
tornarão obras de arte no mundo, como tarefas concretas, que se armazenarão no
celeiro da memória espiritual, como conquistas intransferíveis?
O sentido existencial está dentro da própria criatura, à espera de sua atitude
afirmativa diante da vida. Agora não mais através de cobranças e queixas, como se algo
externo devesse elucidar os rumos a serem tomados, como se a vida tivesse de
nos ofertar a resposta. Somos nós, portanto, que devemos dar a nossa resposta à
existência, pois de fato é ela que nos indaga, e a ela só podemos responder com
a realização de um objetivo pessoal concreto - isto é, com uma
vida plena de sentido.
Adriano Oliveira (RS)
Referências
Bibliográficas:
ÂNGELIS, Joanna de (2005). Conflitos Existenciais.
Psicografado por Divaldo Franco.
ARENDT, Hannah (1992). Entre
o Passado e o Futuro.
BAUMAN, Zygmunt (1998). O
Mal-Estar da Pós-Modernidade.
FRANKL, Viktor E. (2002). Em Busca de Sentido.
FREITAS, Luiz Carlos de (2005). Uma pós-modernidade de libertação: reconstruindo as esperanças.
LUKAS, Elisabeth (1990). Mentalização e saúde: a arte de viver e logoterapia.