Compilado do livro Libertação de
André Luiz (espírito) e Francisco Xavier
A
frente de vasta tribuna vazia e sob as galerias laterais abarrotadas de povo,
compacta multidão se amontoava, irreverente. Alguns minutos decorreram,
desagradáveis e pesados, quando absorvente vozerio se fez ouvido: Os
magistrados! Os magistrados! Lugar! Lugar para os sacerdotes da justiça!
Procurei
a paisagem exterior, curiosamente, tanto quanto me era possível, e vi que
funcionários rigorosamente trajados à moda dos lictores da Roma antiga,
carregando a simbólica machadinha (fasces) ao ombro, avançavam, ladeados por
servidores que sobraçavam grandes tochas a lhes clarearem o caminho.
Penetraram
o átrio em passos rítmicos e, depois deles, sete andores, sustentados por
dignitários diversos daquela corte brutalizada, traziam os juízes,
esquisitamente ataviados. Que solenidade religiosa era aquela? As poltronas
suspensas eram, em tudo, idênticas à sédia gestatória das cerimônias papalinas.
Varando,
agora, o recinto, os lictores passaram o instrumento simbólico às mãos e
alinharam-se, corretos, perante a tribuna espaçosa, sobre a qual resplandecia
alarmante facho de luz. Os julgadores, por sua vez, desceram, pomposos, dos
tronos içados e tomaram assento numa espécie de nicho a salientar-se de cima,
inspirando silêncio e temor, porque a turba inconsciente, em redor, calou-se de
súbito.
Tambores
variados rufaram, como se estivéssemos numa parada militar em grande estilo, e
uma composição musical semi-selvagem acompanhou-lhes o ritmo, torturando-nos a
sensibilidade. Terminado aquele ruído, um dos julgadores se levantou e
dirigiu-se à massa, aproximadamente nestes termos: “Nem lágrimas, nem lamentos.
Nem sentença condenatória, nem absolvição gratuita. Esta casa não pune, nem
recompensa. A morte é caminho para a justiça. Escusado qualquer recurso à
compaixão, entre criminosos. Não somos distribuidores de sofrimento, e, sim,
mordomos do Governo do Mundo”.
Nossa
função é a de selecionar delinqüentes, a fim de que as penas lavradas pela
vontade de cada um sejam devidamente aplicadas em lugar e tempo justos. Quem
abriu a boca para vilipendiar e ferir, prepare-se a receber, de retorno, as
forças tremendas que desencadeou através da palavra envenenada.
Quem
abrigou a calúnia, suportará os gênios infelizes aos quais confiou os ouvidos. Quem
desviou a visão para o ódio e para a desordem, descubra novas energias para
contemplar os resultados do desequilíbrio a que se consagrou. Quem utilizou as
mãos em sementeiras de malícia, discórdia, inveja, ciúme e perturbação
deliberada, organize resistência para a colheita de espinhos.
Quem
centralizou os sentidos no abuso de faculdades sagradas espere, doravante,
necessidades enlouquecedoras, porque as paixões envilecentes, mantidas pela
alma no corpo físico, explodem aqui, dolorosas e arrasadoras. A represa por
longo tempo guarda micróbios e monstros, segregados a distância do curso
tranquilo das águas; todavia, chega um momento em que a tempestade ou a
decadência surpreendem a obra vigorosa de alvenaria e as formas repelentes,
libertadas, se espalhem e crescem em toda a extensão da corrente.
Seguidores
do vício e do crime, tremei! Condenados por vós mesmos, conservais a mente
prisioneira das mais baixas forças da vida, à maneira do batráquio encarcerado
no visco do pântano, ao qual se habituou no transcurso dos séculos! Nesse
ponto, o orador fez pausa e reparei os circunstantes. Olhos esgazeados pelo
pavor jaziam abertos em todas as máscaras fisionômicas.
O
juiz, por sua vez, não parecia respeitar o menor resquício de misericórdia. Mostrava-se
interessado em criar ambiente negativo a qualquer espécie de soerguimento
moral, estabelecendo nos ouvintes angustioso temor. Prolongando-se o intervalo,
enderecei com o olhar silenciosa interrogação ao nosso orientador, que me falou
quase em segredo:
—
O julgador conhece à saciedade as leis magnéticas, nas esferas inferiores, e
procura hipnotizar as vítimas em sentido destrutivo, não obstante usar, como
vemos, a verdade contundente. Não vale acusar a edilidade desta colônia —
prosseguiu a voz trovejante —, porque ninguém escapará aos resultados das
próprias obras, quanto o fruto não foge às propriedades da árvore que o
produziu.
Amaldiçoados
sejam pelo Governo do Mundo quem nos desrespeite as deliberações, baseadas,
aliás, nos arquivos mentais de cada um. Assinalando, intuitivamente, a queixa
mental dos ouvintes, bradou, terrificante: Quem nos acusa de crueldade? Não
será benfeitor do espírito coletivo o homem que se consagra à vigilância de uma
penitenciária? e quem sois vós, senão rebotalho humano? Não viestes, até aqui,
conduzidos pelos próprios ídolos que adorastes?
Nesse
momento, convulsivo choro invadiu a muitos. Gritos atormentados, rogativas de
compaixão se fizeram ouvir. Muitos se prosternaram de joelhos. Imensa dor
generalizara-se. Gúbio trazia a destra sobre o peito, como se contivesse o
coração, mas, vendo por minha vez aquele grande grupo de espíritos rebelados e
humilhados, orgulhosos e vencidos, lastimando amargamente as oportunidades perdidas,
recordei meus velhos caminhos de ilusão e, porque não dizer? Ajoelhei-me
também, compungido, implorando piedade em silêncio.
Exasperado,
o julgador bradou, colérico: Perdão? Quando desculpastes sinceramente os
companheiros da estrada? Onde está o juiz reto que possa exercer, impune, a
misericórdia? E incidindo toda a força magnética que lhe era peculiar, através
das mãos, sobre uma pobre mulher que o fixava, estarrecida, ordenou-lhe com voz
soturna: Venha! Venha!
Com
expressão de sonâmbula, a infeliz obedeceu à ordem, destacando-se da multidão e
colocando-se, em baixo, sob os raios positivos da atenção dele. — Confesse! Confesse!
Determinou o desapiedado julgador, conhecendo a organização frágil e passiva a
que se dirigia. A desventurada senhora bateu no peito, dando-nos a impressão de
que rezava o “confiteor” e gritou, lacrimosa: Perdoai-me! Perdoai-me, ó Deus
meu!
E
como se estivesse sob a ação de droga misteriosa que a obrigasse a desnudar o
íntimo, diante de nós, falou, em voz alta e pausada: “Matei quatro filhinhos
inocentes e tenros e combinei o assassínio de meu intolerável esposo. O crime,
porém, é um monstro vivo. Perseguiu-me, enquanto me demorei no corpo. Tentei
fugir-lhe através de todos os recursos, em vão e por mais buscasse afogar o
infortúnio em “bebidas de prazer”, mais me chafurdei no charco de mim mesma.
De
repente, parecendo sofrer a interferência de lembranças menos dignas, clamou: “Quero vinho! Vinho! Prazer! Em vigorosa
demonstração de poder, afirmou, triunfante, o magistrado: “Como libertar
semelhante fera humana ao preço de rogativas e lágrimas? Em seguida, fixando
sobre ela as irradiações que lhe emanavam do temível olhar, asseverou,
peremptório: “A sentença foi lavrada por si mesma! Não passa de uma loba, de
uma loba...
A
medida que repetia a afirmação, qual se procurasse persuadi-la a sentir-se na
condição do irracional mencionado, notei que a mulher, profundamente
influenciável, modificava a expressão fisionômica. Entortou-se lhe a boca, a
cerviz curvou-se, espontânea, para a frente, os olhos alteraram-se, dentro das
órbitas. Simiesca expressão revestiu-lhe o rosto. Via-se, patente, naquela
exibição de poder, o efeito do hipnotismo sobre o corpo perispirítico.
Em
voz baixa, procurei recolher o ensinamento de Gúbio, que me esclareceu num
cicio: “O remorso é uma bênção, sem dúvida, por levar-nos à corrigenda, mas
também é uma brecha, através da qual o credor se insinua, cobrando pagamento. A
dureza coagula-nos a sensibilidade durante certo tempo; todavia, sempre chega
um minuto em que o remorso nos descerra a vida mental aos choques de retorno
das nossas próprias emissões.
E
acentuando, de modo singular, a voz quase imperceptível, acrescentou: “Temos
aqui a gênese dos fenômenos de “licantropia”, inexplicáveis, ainda, para a
investigação dos médicos encarnados. Lembras-te de Nabucodonosor, o rei
poderoso, a que se refere a Bíblia? Conta-nos o Livro Sagrado que ele viveu,
sentindo-se animal, durante sete anos. O hipnotismo é tão velho quanto o mundo
e é recurso empregado pelos bons e pelos maus, tomando-se por base, acima de
tudo, os “elementos plásticos do perispírito”.
Notando,
porém, que a mulher infeliz prosseguia guardando estranhos caracteres no
semblante perguntei: “Esta irmã infortunada permanecerá doravante em tal
aviltamento da forma? Finda longa pausa, o Instrutor informou, com tristeza: “Ela
não passaria por esta humilhação se não a merecesse”.
Além
disso, se se adaptou às energias positivas do juiz cruel, em cujas mãos veio a
cair, pode também esforçar-se intimamente, renovar a vida mental para o bem
supremo e afeiçoar-se à influenciação de benfeitores que nunca escasseiam na
senda redentora. Tudo, André, em casos como este, se resume à problema de
sintonia. Onde colocamos o pensamento, aí se nos desenvolverá a própria vida.