12 - Visão Espírita da Bíblia
José Herculano Pires
27 – Dilúvio: Catástrofe parcial adaptada a uma antiga lenda
A lenda do dilúvio, que encontramos em Gênesis: VII e VIII, é uma dessas passagens bíblicas que só podem ser tomadas ao pé da letra pelo fanatismo e a ignorância.
Pouco importa que durante séculos as religiões cristãs, com seus doutores e sacerdotes, tenham sustentado a realidade literal dessa lenda. A verdade histórica é apenas esta: a lenda do dilúvio corresponde a um dos arquétipos mentais atualmente estudados pela psicologia profunda.
Os estudos de Carl Gustav Jung a respeito são bastante esclarecedores. Mas o arquétipo coletivo, que corresponde no plano social aos complexos psicanalíticos do plano individual, não é uma abstração. Pelo contrário, é uma realidade psíquica enraizada nos fatos concretos.
O dilúvio bíblico, por isso mesmo, tem duas faces: uma é a realidade histórica, a ocorrência real da catástrofe; outra é a interpretação alegórica, enraizada no arquétipo coletivo e que o texto sagrado nos oferece. O Livro dos Espíritos explica o problema do dilúvio através dessas duas faces, a real e a lendária.
É o que vemos no seu item 59, nas "Considerações e Concordâncias Bíblicas referentes à Criação", que se podem resumir nestas palavras: "O dilúvio de Noé foi uma catástrofe parcial, que se tomou pelo cataclismo geológico". Aliás, essa afirmação de Kardec foi posteriormente confirmada pelas investigações científicas.
O arqueólogo inglês sir Charles Leonardo Woolley descobriu ao norte de Basora, próximo ao Golfo Pérsico, ao dirigir escavações para a descoberta dos restos da “cidade de Ur”, as camadas de lama do dilúvio mencionado na Bíblia. Pesquisas posteriores completaram a descoberta.
O dilúvio parcial do delta dos rios Tigre e Eufrates é hoje uma realidade atestada pela Ciência. Foi esse dilúvio, ou seja, essa inundação parcial, que serviu de motivo histórico para a lenda bíblica.
Como acentua Kardec, nada perdeu com isso a Bíblia, nem a Religião. Mas ambas são diminuídas quando o fanatismo insiste em defender um absurdo, quando teima em dizer que Deus afogou o mundo nas águas de uma chuva de quarenta dias e fez Noé salvar-se, com a própria família e as privilegiadas famílias dos animais de cada espécie existente, para que a vida pudesse continuar na Terra.
Sustentar como realidade histórica a figuração ingênua de uma lenda, conferindo-lhe ainda autoridade divina, é ridicularizar o sentimento religioso e minar as bases da concepção espiritual do mundo. Foi esse processo infeliz de ridicularização que levou o nosso tempo ao materialismo e à descrença que hoje o dominam.
Que diriam os fanáticos da "palavra de Deus" ao saberem que o dilúvio bíblico tem por antecessores o dilúvio babilônico de Gilgamesch, historicamente chamado de "o Noé babilônico", e o dilúvio grego de Deucalião?
O Espiritismo esclarece esse problema, mostrando que o "arquétipo coletivo" de dilúvio é responsável pelo seu aparecimento em diversos capítulos da História das Religiões, e até mesmo na pré-história, entre os povos selvagens. É esse um dos pontos mais curiosos da psicologia das Religiões.
28 – Adão não foi o primeiro homem, mas apenas o primeiro Hebreu
O versículo quarto do capítulo sexto do Gênesis informa: "Ora, naquele tempo havia gigantes na Terra". O tempo referido é o da criação do homem. Se havia gigantes, Adão não era o primeiro homem, tanto mais que a própria Bíblia nos diz que os "filhos de Deus", que eram Adão e sua descendência, casavam-se com as "filhas dos homens".
É o que vemos no versículo dois do Cap. VI: "Vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram para si mulheres", e ainda no versículo quarto, já acima citado: "e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos".
Verifica-se no texto uma dubiedade, parecendo haver uma diferença entre os gigantes e os homens, mas não se poderia explicar as "filhas dos homens", se não fossem filhas dos gigantes.
Essa dubiedade se explica pela Mitologia. Os gigantes, na verdade, são figuras mitológicas que aparecem no texto bíblico, da mesma maneira que nos textos hindus, egípcios e na "Gigantemaquia", poema que se considera como fragmento extraviado da “Teogonia de Hesíodo”. A Bíblia herdou dos antigos livros mesopotâmicos a lenda mitológica dos gigantes.
Esse fato comprova a tese espírita da raça adâmica, que na verdade nada mais é do que o povo hebreu. O exame do texto bíblico, à luz da Antropologia Cultural e da Mitologia, prova que Adão é apenas o primeiro hebreu e não o primeiro homem. A lenda de Adão e Eva é o capítulo mitológico da História dos Judeus, como a lenda grega de Deucalião e Pirra é o da História dos Hebreus.
As duas histórias se confundem, de tão semelhantes, no caso do dilúvio. Assim como Heleno foi o primeiro homem para os gregos, Adão foi o primeiro para os judeus. A falta de conhecimento histórico e a falsa interpretação teológica da Bíblia transformaram uma antiga lenda mitológica em verdade revelada. O Espiritismo não endossa esse absurdo.
Curioso notar que Deucalião, o Noé grego, e Pirra, sua mulher, tiveram três filhos, como aconteceu com Adão e Eva e depois com Noé. Em todas essas coincidências comprova-se a origem mitológica e a presença dos arquétipos coletivos nas passagens supostamente históricas da Bíblia.
Querer sustentar a realidade desses relatos ingênuos e impô-los ao povo como verdade divina é querer confundir religião com superstição. O Espiritismo prefere esclarecer esses problemas à luz da razão.