João Huss na História do Espiritismo
Publicado no Anuário Espírita em 1973
Órgão do Instituto de Difusão Espírita de Araras
Wallace Leal V. Rodrigues
Há na História do Espiritismo alguns fatos que desafiam a argúcia do pesquisador. Dia chegará, entretanto, que algum intelectual em melhores condições, pesquisará na própria França, fazendo luz sobre esses enigmas.
Um deles reside nas reencarnações de Allan Kardec. Todos sabemos que foi Zéfiro, um dos espíritos protetores do Professor Rivail quem lhe sugeriu a adoção do pseudônimo de Allan Kardec.
Ele, Zéfiro, o conhecera na encarnação em que assim se chamara, decorrida nas Gálias, quando o Professor Rivail fora um druida.
A sugestão foi acatada, pois a entidade era uma das mais expeditas no assessoramento às sessões, das quais as perguntas do Professor Rivail e as respostas e explicações dos Espíritos superiores, deram nascimento ao conjunto de obras de onde nasceu o Espiritismo.
Mas, além dessa sugestão, sabe-se que muito mais o espírito Zéfiro narrou a Kardec. Esses papéis não foram publicados.
Consta que parte deles veio ter ao Brasil, onde estão fechados em caixa-forte. Outros ficaram com o Sr. Leymarie, mais particularmente em sua livraria, em Paris. Depois foram levados, com alguns pertences de Kardec, seu relógio de bolso etc., para a “Maison Des Spirites”, recentemente vendida.
No correr do Congresso Espírita de 1925, do qual vou me ocupar nesta tomada de vista, talvez o mais importante da História do Espiritismo, (por haver encontrado na estante de Cairbar Schutel uma relação do que estava exposto) sei que esse relógio, outros objetos e papéis, ainda existiam e eram conservados.
Depois veio a Segunda Grande Guerra, Paris foi ocupada pelos nazistas e as portas da Maison foram abertas a fim de que soldados ali se abrigassem.
O Sr. Hubert Forestier, recentemente desencarnado, e que substituiu o grande Jean Meyer na direção da “Revue Spirite e na administração da Maison”, não era homem de muitas falas e não sucedeu a Kardec no sentido de contribuir o máximo possível para a difusão do Espiritismo.
Aliás, que era o objetivo da Societé que chegava a auxiliar financiando o lançamento das obras básicas em línguas estrangeiras. Prova disto tenho eu como, por exemplo, as edições em tcheco e italiano.
Várias vezes tentei a aproximação mais íntima com Forestier. De certa feita chegou a negar a sua foto para publicação no Brasil, e, a cada vez que eu mencionava o material deixado por Allan Kardec, sua resposta era lacônica e fria, logo seguida por um ponto-final.
A Maison fora pillé pelos alemães. Compreende-se que os alemães tenham alimentado as lareiras de Maison, com os livros de sua biblioteca, mas é incrível que as preciosidades ali existentes, tenham sido largadas para trás. Todavia, tudo isto fica para o pesquisador que chegar a Paris com tempo e dinheiro para as buscas necessárias.
Toca-me agora tão apenas narrar o que ouvi e li acerca das reencarnações do Codificador admirável. Por exemplo, Zéfiro teria contado que, como Allan Kardec, o professor vivera ao tempo da invasão das Gálias por César. Era um “sacerdote druida do culto ao carvalho”.
Desse culto nasceu a óstia, que era feita das bolotas da árvore e ministradas aos fiéis. Por esse tempo também viveu Vercingetorix, o herói maior da Gália, vencido por Júlio César mas que, ao tempo mesmo do Professor Rivail, renasceu de um tronco gaulês como Wellington, que deveria tirar desforra sobre o antigo César, agora vestido de Napoleão Bonaparte.
Os Espíritos do carvalho eram façanhudos e se manifestavam quando os fiéis se davam as mãos em torno do tronco da árvore. O vento, em suas ramas, coisa que muitas vezes aconteceu na Fazenda Santa Maria, perto de Sacramento, ao tempo de Eurípedes Barsanulfo, soprava as vozes dos espíritos, quase todos belicosos.
Até que um dia Zéfiro criou o culto pacífico do pinheiro, no qual as Entidades não apenas pregavam o bem e a paz, mas acendiam também luzes extra-terrenas.
Parece que, enciumado, o sacerdote do carvalho terminou por prender a Zéfiro e a sacrificá-lo na pedra-sagrada, abrindo-lhe o ventre e fazendo prognósticos quanto ao futuro, apalpando-lhe as vísceras ainda quentes.
O tempo passou e a roda da reencarnação se moveu inexorável. E, sempre presente o carvalho, o antigo sacerdote (John Hus ou João Huss) nasceu entre os bosques de carvalhos da Boêmia, no dia 6 de julho de 1369, em Husinetz, vivendo vida inquieta, da qual vamos nos ocupar, e terminando por morrer queimado pela Santa Igreja Católica, amarrado a um pau de carvalho, em uma fogueira onde ardia achas deste mesmo vegetal.
Esta história pode ser levada mais longe, pois o Professor Rivail, ao desencarnar com o rompimento de um aneurisma deixou-se cair exatamente sobre uma mesa de carvalho, com os pés em forma de tortilhões, e que só Deus sabe onde foi parar. Aqui, entretanto, é hora de fazer um intermezzo.
De todos os homens que viveram ao tempo de Kardec, o principal é Léon Denis, que, embora tenha encontrado o Professor Rivail duas ou três vezes, uma quando Kardec visitou sua cidade, Tours, onde pronunciou uma conferência sobre a obsessão em um jardim de casa particular, iluminado a lampião, pois que a polícia de Napoleão não admitia aglomeramentos e fechou as portas do salão alugado para a noite; e outra quando visitou o professor em Paris.
Léon Denis é, pelo menos ao nosso ver, o principal porque, senhor de um estilo leve e muito comunicativo, ele levou ao povo a Doutrina Espírita, formando ao lado de homens que, em certa época, floresceram na França e se tornaram célebres pelo trabalho de levar ao povo as ciências ou o conhecimento, como, por exemplo, Babinet e mesmo Flammarion. Neste sentido Denis é inimitável.
Pois muito bem: recentemente traduzimos o livro de “Mademoiselle Claire Baumard”, que foi sua secretária e amiga fiel nos anos de sua cegueira, isto é de 1918 até a sua morte. As revelações contidas em “Léon Denis Intime” e outras do próprio Denis, contêm informações imensamente curiosas.
Até 1925, por exemplo, o Espírito de Allan Kardec se comunicava nas sessões de Denis, em Tours, como se vai ler no livro que entregamos à Edicel Editora. Em “Le Génie Celtique et le Monde Invisible”, ainda não lançado em português porque, na obra de Denis esse é um livro que interessa mais particularmente aos celtas, aos franceses, etc., encontramos um grande número de comunicações de Kardec, quase sempre presente às reuniões do grupo de Tours.
E a prova de que era realmente o Professor Rivail, pode ser tida por este episódio: Denis fora convidado para ser o Presidente do Congresso Espírita Internacional de 1925, como de resto o foi.
Ora, em uma das sessões em Tours, logo após ter recebido o convite, apresentando-se o Espírito de Kardec, Denis reclamou: estava velho, cego, enfermo; a viagem a Paris era muito cansativa e, também, cansativo, seria o Congresso Espírita Internacional. Porque não convidaram Camille Flammarion?
E lá veio a resposta de Kardec, rápida e seca: "Camille Flammarion não estará lá." Denis encheu-se de espanto: Mas como? Flammarion não participaria do Congresso? E o Espírito de Kardec, sem dar mais explicações: "Camille Flammarion não estará lá!".
E sucedeu que, realizando-se o Congresso de 6 a 13 de setembro de 1925, não pôde realmente ser assistido por Camille Flammarion, que desencarnara, inesperadamente, no Observatório de Juvissy, em julho.
Aí está uma prova provada. Entretanto não apenas Kardec comparecia às sessões de Tours. Também, e regularmente, o “Espírito de Jerônimo de Praga” que era o guia espiritual de Denis. Ora, Jerônimo de Praga fora o grande e o melhor dos amigos de João Huss, o antigo Allan Kardec.
Aqui temos dois personagens. Vamos achar um terceiro antes de continuar a exposição. Quem fora Denis? Dizia e escrevia ele que fora um monge muito guerreiro. E eu me atrevo a concluir que ele se referia a John Wycliffe.
Os três, isto é, João Huss, Jerônimo de Praga e John Wycliffe foram talvez, os mais importantes personagens da Reforma. Examinemos esse relacionamento.
Jerônimo de Praga era conterrâneo de João Huss e se dirigira à Inglaterra para completar seus estudos teológicos. Ali foi aluno de “John Wycliffe” o primeiro a denunciar os excessos, a cobiça e a vilania da Igreja Romana.
Wycliffe comovia suas audiências, malhando e denunciando a opressão e a decomposição religiosa, conscientizando o povo e proclamando a necessidade de uma reforma. Ele convencia e exaltava os ânimos.
Quando Jerônimo regressou a Praga, levava consigo os escritos de Wycliffe e o fogo que o comunicara. Foi ao encontro de João Huss, Reitor da Universidade de Praga e pregador altamente popular, com imensas platéias, na chamada Igreja de Belém.
Jerônimo não encontrou João Huss satisfeito com a Igreja, que explorava o povo ao ponto de “vender lugares à direita ou à esquerda do trono de Deus, variando os preços conforme essa proximidade”.
Os dois amigos tiveram longas conversas e João Huss leu os escritos de John Wycliffe. Grande pregador, em breve João Huss levantava o povo de seu país contra a Tirania de Roma.
Seria longo narrar os caminhos e descaminhos que levaram João Huss a um Julgamento na cidade suíça de Constança. Sereno e tranqüilo enfrentou os seus julgadores. Jerônimo o acompanhara.
As autoridades eclesiásticas encontraram como condená-lo, embora fosse um dos homens mais puros e admiráveis do seu tempo. João Huss foi levado à fogueira de lenha de carvalho, como já foi dito, e morreu, um mártir cristão, com o nome de Jesus nos lábios.
Suas cinzas foram atiradas ao Rio Reno. Tudo fora, por parte de Roma, uma intriga cavilosa e terrível. Jerônimo viu estarrecido aquela fogueira humana e, tal como sucedeu a Pedro, não resistiu e pôs-se em fuga.
Todavia, nas montanhas em torno de Constança, conseguiu vencer os seus temores. Ele também um excelente orador, em praça pública, denunciou os julgadores de João Huss, louvou a sua virtude e vituperou impiedosamente os desmandos da Igreja Romana.
Foi preso e levado a julgamento. Negou-se a arredar de sua posição: centenas de pessoas assistiram às suas arremetidas firmes e corajosas contra o Clero. Como João Huss, Jerônimo foi encarcerado e torturado.
Tudo infrutífero. Sentindo que perdiam terreno, seus julgadores condenaram-no à morte. Foi queimado em praça pública e igualmente, suas cinzas foram atiradas no Rio Reno.
Jerônimo de Praga e João Huss morreram em 1415. John Wycliffe já havia desencarnado, em 1384. Mas, para completar o quadro dessas almas afins, nesse mesmo ano de 1415 o Concilio de Constança ordenou que os ossos de Wycliffe, que fora enterrado no adro da igreja de Lutterworth, fossem exumados, levados à fogueira, reduzidos a cinzas e, em seguida, atiradas estas às águas do rio Swift.
O espaço de um artigo é pequeno demais para que se vá mais longe. O que existe aqui entretanto, serve para mostrar como o progresso, da Humanidade caminha sobre o sacrifício de grupos de Espíritos heróicos.
Vemos por estas anotações breves, um flash que ilumina o passado distante de quase quinhentos anos, a bravura, em nome de Cristo, destes vultos singulares.
Ao colocar o ponto-final neste artigo, nos lembramos das comovedoras cartas que Eurípedes Barsanulfo e Cairbar Schutel se entretrocavam, esses heróicos pioneiros do Espiritismo no Brasil, mutuamente se encorajando e trocando o calor da fraternidade verdadeira, enquanto enfrentavam momentos difíceis e dolorosos.
E só assim caminha a Humanidade, vencendo a matéria e cada vez mais ansiando pelo reinado do Espírito.
João Huss na História do Espiritismo - Publicado no Anuário Espírita em 1973 - Órgão do Instituto de Difusão Espírita de Araras – por Wallace Leal V. Rodrigues.