Dos
infelizes protagonistas da Inconfidência Mineira, no dia 21 de abril de todos
os anos, aqueles que podem excursionar pela
Terra volvem às ruínas de Ouro Preto, a fim de se reunirem entre as velhas
paredes da casa humilde do sítio da Cachoeira, trazendo a sua
homenagem de amor à personalidade do Tiradentes.
Nessas assembléias espirituais, que os encarnados poderiam considerar como
reuniões de sombras, os preitos de amor
são mais expressivos e mais sinceros, livres de todos os enganos da História e
das hipocrisias convencionais. Ainda agora, compareci a essa festividade de
corações, integrando a caravana de alguns brasileiros desencarnados, que para
lá se dirigiu associando-se às comemorações do proto mártir da emancipação do
País.
Nunca tive muito contato com as coisas de Minas Gerais, mas a antiga Vila Rica, atualmente elevada à condição de Monumento
Nacional, pelas suas relíquias prestigiosas, sempre me impressionou pela sua
beleza sugestiva e legendária.
Nas suas
ruas tortuosas, percebe-se a mesma fisionomia do Brasil dos Vice-Reis. Uma coroa de lendas suaves paira sobre as suas ladeiras
e sobre os seus edifícios seculares, embriagando o espírito do forasteiro com
melodias longínquas e perfumes distantes.
Na terra
empedrada, ainda existem sinais de passos dos antigos conquistadores do ouro
dos seus rios e das suas minas e, nas suas igrejas,
ainda se ouvem soluços de escravos, misturados com gritos de sonhos mortos, do
seu valoroso heroísmo. A velha Vila Rica, com a névoa fria dos seus horizontes,
parece viver agora com as suas saudades de cada dia e com as suas recordações
de cada noite.
Sem me alongar nos lances descritivos, acerca dos seus tesouros do passado,
objeto da observação de jornalistas e escritores de todos os tempos, devo dizer que, na noite
de hoje, a casa antiga dos Inconfidentes tem estado cheia das sombras dos
mortos.
Aí fui
encontrar, não segundo o corpo, mas segundo o espírito, as personalidades de
Domingos Vidal Barbosa, Freire de Andrada, Mariano Leal, José Joaquim da Maia,
Cláudio Manuel, Inácio Alvarenga, Dorotéia de Seixas, Beatriz Francisca
Brandão, Toledo Pisa, Luís de Vasconcelos e
muitos outros nomes, que participaram dos acontecimentos relativos à malograda
conspiração.
Mas, de
todas as figuras veneráveis ao alcance dos meus olhos, a que me sugeria as
grandes afirmações da pátria era, sem dúvida, a do
antigo alferes Joaquim José
da Silva Xavier, pela sua nobre e serena beleza. Do seu olhar claro e
doce, irradiava-se toda uma onda de estranhas revelações, e não foi sem timidez
que me acerquei da sua personalidade, provocando a sua palavra.
Falando-lhe a respeito do movimento de
emancipação política, do qual havia sido o herói extraordinário, declinei minha
qualidade de seu ex-compatriota, filho do Maranhão, que também combatera, no
passado, contra o domínio dos estrangeiros.
"Meu amigo - declarou com bondade - antes
de tudo, devo afirmar que não fui um herói e sim um Espírito em prova, servindo
simultaneamente à causa da liberdade da minha terra. Quanto à
Inconfidência de Minas, não foi propriamente um movimento nativista, apesar de
ter aí ficado como roteiro luminoso para a independência da pátria.
Hoje,
posso perceber que o nosso movimento era um projeto por demais elevado para as
forças com que podia contar o Brasil daquela época,
reconhecendo como o idealismo eliminou em nosso espírito todas as noções da
realidade prática; mas, estávamos embriagados pelas idéias generosas que nos chegavam
da Europa, através da educação universitária.
E,
sobretudo, o exemplo dos Estados Americanos do Norte, que afirmaram os princípios imortais do direito do homem,
muito
antes do verbo inflamado de Mirabeau, era uma luz incendiando a nossa
imaginação.
O Congresso de Filadélfia, que reconheceu todas
as doutrinas democráticas, em 1776, afigurou-se-nos uma garantia da
concretização dos nossos sonhos. Por intermédio de José Joaquim da Maia
procuramos sondar o pensamento de Jefferson, em Paris, a nosso respeito; mas,
infelizmente, não percebíamos
que a luta, como ainda hoje se verifica no mundo, era de princípios.
O
fenômeno que se operava no terreno político e social era o desprezo do absolutismo e da tradição, para que o
racionalismo dirigisse a Vida dos homens. Fomos os títeres de alguns portugueses
liberais, que, na colônia, desejavam adaptar-se ao novo período histórico do
Planeta, aproveitando-se dos nossos primeiros surtos de nacionalismo.
Não
possuíamos um índice forte de brasilidade que nos assegurasse a vitória, e a verdade só me foi intuitivamente revelada quando as
autoridades do Rio mandaram prender-me na rua dos Latoeiros."
E nada tendes a dizer sobre a defecção de alguns dos vossos companheiros? perguntei.
"Hoje, de modo algum desejaria avivar minhas amargas lembranças. Aliás, não foi apenas Silvério quem nos denunciou perante
o Visconde de Barbacena; muitos outros fizeram o mesmo, chegando um deles a se
disfarçar como um fantasma, dentro das noites de Vila Rica, avisando quanto à
resolução do governo da província, antes que ela fosse tomada publicamente, com
o fim de salvaguardar as posições sociais de amigos do Visconde, que haviam
simpatizado com a nossa causa.
Graças a
Deus, todavia, até hoje, sinto-me ditoso por
ter subido sozinho os vinte degraus do patíbulo." - E sobre esses fatos
dolorosos, não tendes alguma impressão nova a nos transmitir?
E os lábios do Herói da Inconfidência, como se receassem dizer toda a verdade, murmuraram
estas frases soltas: "Sim, a Sala do Oratório e
o vozerio dos companheiros desesperados com a sentença de morte... a Praça da Lampadosa,
minha veneração pelo Crucifixo do Redentor e o remorso do carrasco... a
procissão da Irmandade da Misericórdia, os cavaleiros, até o derradeiro impulso
da corda fatal, arrastando-me para o abismo da Morte."
E concluiu: "Não tenho
coisa alguma a acrescentar às descrições históricas, senão minha profunda
repugnância pela hipocrisia das convenções sociais de todos os tempos."
É
verdade - acrescentei - reza a História que, no instante da vossa morte, um
religioso, falou sobre o tema do Eclesiastes: "Não atraiçoes o teu rei,
nem mesmo por pensamentos." E terminando a minha observação com uma
pergunta, arrisquei:
Quanto ao Brasil atual, qual a vossa opinião a respeito?
"Apenas a de que ainda não foi
atingido o alvo dos nossos sonhos. A nação ainda não foi realizada para
criar-se uma linha histórica, mantenedora da sua perfeita independência. Todavia,
a vitalidade de um povo reside na organização da sua economia e a economia do
Brasil está muito longe de ser realizada.
A
ausência de um interesse comum, em "favor do País,
dá causa não mais à derrama dos impostos, mas ao derrame das ambições, onde
todos querem mandar, sem saberem dirigir a si próprios." Antes que se fizesse
silêncio entre nós, tornei ainda:
“Com relação aos ossos dos inconfidentes, vindos agora da África para o antigo
teatro da luta, hoje transformado em Panteão Nacional ,
são de fato autênticos esqueletos dos apóstolos
da liberdade?”
"Nesse particular - respondeu Tiradentes com uma ponta de ironia - não
devo manifestar os meus pensamentos. Os ossos encontrados
tanto podem ser de Gonzaga, como podem pertencer, igualmente, ao mais miserável
dos negros de Angola. O orgulho humano e as vaidades patrióticas têm também os seus
limites. Aliás, o que se faz necessário é a
compreensão dos sentimentos que nos moveram a personalidade, impelindo-nos para
o sacrifício e para a morte.”
Mas, não pôde terminar. Arrebatado numa aluvião de abraços amigos e carinhosos,
retirou-se o grande patriota que o Brasil hoje festeja, glorificando o seu
heroísmo e a sua doce humildade.
Aos meus ouvidos emocionados ecoavam as notas derradeiras da música evocativa e
dos fragmentos de orações que rodeavam o monumento do Herói, afigurando-se-me
que Vila Rica ressurgira, com os seus coches dourados e os seus fidalgos, num
dos dias gloriosos do Triunfo Eucarístico; mas, aos poucos, suas luzes se amorteceram no silêncio da noite, e a
velha cidade dos conspiradores entrou a dormir, no tapete glorioso de suas
recordações, o sono tranqüilo dos seus sonhos mortos.
Extraído do livro “Crônicas do Além túmulo”
Mensagem de Humberto de Campos (espírito)
Psicografada em 21 de abril de 1937 pelo médium
Francisco Cândido Xavier