Hermínio C. Miranda
2) O
animismo na codificação.: Empenhados na elaboração de uma obra tão abrangente
quanto possível, os instrutores da codificação se viram forçados a sacrificar o
particular em favor do geral, o pormenor em beneficio da visão de conjunto. Do contrário a obra
assumiria proporções e complexidades que a tornariam praticamente inabordável.
Limitaram-se,
pois, no
caso específico do animismo, a referências sumárias, apenas para indicar a
existência do problema, como que deixando-o a futuros desdobramentos de iniciativa dos
próprios seres encarnados, ainda que sempre ajudados e assistidos pelos
mentores desencarnados.
É a
impressão que se colhe quando hoje analisamos vários aspectos dos ensinamentos
que nos legaram diretamente ou por intermédio dos escritos pessoais de Allan
Kardec.
No capítulo XIX de O Livro dos Médiuns (Do papel dos médiuns nas comunicações
espíritas) Kardec reproduz o teor das consultas que formulou a dois dos mais
competentes especialistas sobre o fenômeno mediúnico, ou seja, “Erasto e Timóteo”,
que parece terem sido incumbidos de orientar os estudos em tomo da mediunidade.
A alma do médium pode comunicar-se como a de qualquer outro. Se goza de certo
grau de liberdade, recobra suas qualidades de espírito. Tendes a prova disso
nas visitas que vos fazem as almas de pessoas vivas, as quais muitas vezes
se comunicam convosco pela escrita, sem que as chameis.
Porque,
ficai sabendo, entre os espíritos que evocais, alguns há que estão encarnados na
Terra. Eles,
então, vos falam como espíritos e não como homens, Por que não se havia de dar
o mesmo como médium? (Kardec, Allan, 1975.)
Cuida esse capítulo da atividade da alma, enquanto desdobrada do corpo físico pelo
sono comum, e nisto estão incluídos os sonhos, contatos pessoais com outros
indivíduos, encarnados ou desencarnados, telepatia, letargia, catalepsia, morte
aparente, sonambulismo, êxtase, dupla visão. Todo esse capítulo cuida,
portanto, da fenomenologia anímica, ainda que de maneira um tanto sumária,
pelas razões já expostas.
3) A palavra dos continuadores.: O estudo mais aprofundado dessas questões
parece ter sido reservado aos encarnados. Assumiram a responsabilidade pela
tarefa não
apenas Aksakof e Bozzano, como outro seguro e competente estudioso espírita:
Gabriel Delanne, em obra aliás, não muito difundida no Brasil, já que não foi
traduzida para a nossa língua. Trata-se de Recherches sur la Médiumnité, com
515 páginas compactas, expondo cerrada argumentação, toda ela apoiada em fatos
observados com o necessário rigor científico.
O livro
compõe-se de dês partes: 1) o fenômeno espírita e a escrita automática das
histéricas; 2) animismo; 3) espiritismo.
Que eu saiba, é uma das únicas obras, no contexto doutrinário do espiritismo,
que estuda em profundidade o problema da "psicografia automática", ou
seja, a escrita produzida pelo inconsciente, funcionando o sensitivo como
médium de si mesmo.
Os livros de Boddington também chamam a atenção para este aspecto, mas longe
estão da profundidade e da documentação de que se vale Delanne, embora sua atitude
seja bem radical ao sugerir que comunicações que estejam dentro das
possibilidades culturais do médium devam ser consideradas como originárias do
inconsciente do próprio sensitivo. Para o autor inglês, textos de legitima
autoria dos desencarnados são somente aqueles que demonstrem conhecimentos
superiores ao do médium.
Não apenas julgo o critério demasiado rígido, mas também inadequado, porque dificilmente
conheceremos com segurança o vigor intelectual do espírito do médium, ou seja, da sua
individualidade, em contraste com seu conhecimento como ser encarnado, na faixa
da personalidade. Em outras palavras: o médium pode ser um espírito de elevada
condição intelectual ainda que, como encarnado, seja culturalmente medíocre.
É o mais
provável, uma vez que a experiência ensina que o acervo mental oculto no
inconsciente, na memória integral, tem de ser, necessariamente, muito superior,
em volume e qualidade, ao que trazemos no limitado âmbito do consciente e do
subconsciente, isto é, nas memórias da vida presente, em contraste com os
imensos arquivos das vidas anteriores.
Não é, pois, de admirar-se que um sensitivo dotado de modestos recursos
intelectuais, como ser encarnado, seja capaz de produzir, pelo processo da
psicografia automática, um texto brilhante, se conseguir criar condições propicias
à manifestação anímica, isto é, se permitir que se manifeste em todo o seu potencial seu
próprio inconsciente.
Isto, porém, de forma alguma invalida, pelo contrário, confirma a tese de Aksakof e
Bozzano, Delanne e outros, de que o fenômeno anímico, longe de excluir a
possibilidade do fenômeno espírita, é um fator a mais para corroborar este
último.
O raciocino pode ser colocado na seguinte ordem: admitida a sobrevivência do
espírito, seria
ridículo e anticientífico declarar que o espírito encarnado pode manifestar-se
pela psicografia, mas o desencarnado não. Sei que muitos contestarão o argumento dizendo
que ele é falho, no sentido de que não está provada, ainda, a sobrevivência.
Isto,
porém, não é objeção que me aflija. Primeiro, porque este não é um livro
apologético, concebido para demonstrar ou provar a existência ou sobrevivência
do espírito e, sim, uma discussão do problema da mediunidade.
Segundo,
entendo que, enquanto os cépticos e os negadores duvidam e procuram demolir as
estruturas da realidade espiritual, é preciso que alguém assuma essa realidade, que
a nosso ver está suficientemente demonstrada, e dê prosseguimento ao trabalho
de inseri-la no contexto humano e colocá-la a serviço de um relacionamento mais
inteligente, dinâmico e construtivo das duas faces da realidade, uma visível,
outra invisível.
A
rejeição é problema daquele que rejeita, não do que está convencido dessa
realidade.
A esta altura da história do espiritismo no mundo, não estão mais obrigados os
espíritas a continuar de braços cruzados enquanto os negadores se engalfinham
em um verdadeiro corpo-a-corpo para provar que estão com a razão nos seus
postulados.
Decorrido
mais de um século, não conseguiram provar que os nossos estão errados. O
problema é deles e está com eles, não conosco. Por isso, a postura assumida
neste livro é a de que não temos nada a provar a ninguém, mesmo porque não
estamos apoiados em crenças ou crendices, hipóteses ou suposições, mas na
sólida estrutura de uma doutrina racional, sustentada por fatos bem observados e bem
documentados que nos garantem sua autenticidade pelo testemunho repetido e
concordante de cientistas e pesquisadores confiáveis.
4) O fantasma do animismo.: Essa realidade nos leva à conclusão que há, sim,
fenômenos de natureza anímica, ou seja, que podem ser explicados, e o são mesmo
como manifestações do espírito do próprio sensitivo. Que os críticos
insistam em dizer que são tais fenômenos produzidos pela mente ou pelo
inconsciente das pessoas, isso é problema deles, empenhados como estão em questões
semânticas. O espiritismo nada tem a temer, nem aí nem em nenhum outro ponto de
sua estrutura doutrinaria.
Como
tenho dito alhures, o espiritismo tem sua própria teoria do conhecimento que, em vez de
resultar de especulações teóricas, ainda que inteligentes e até brilhantes, foi
deduzida dos fatos observados. Desmintam os fatos antes de proporem a rejeição ou
modificações estruturais inaceitáveis.
Em paralelo com fenômenos de natureza anímica produzidos pelo espírito
encarnado, há
fenômenos espíritas gerados por seres humanos temporariamente desprovidos de
corpos físicos, ou seja, desencarnados. Essa é a realidade. E uma não exclui a outra,
ao contrário, complementam-se e se explicam mutuamente.
Na verdade a questão do animismo foi de tal maneira inflada, além de suas
proporções, que acabou transformando-se em verdadeiro fantasma, uma
assombração para espíritas desprevenidos ou desatentos. Muitos são os
dirigentes que condenam sumariamente o médium, pregando-lhe o rótulo de fraude,
ante a mais leve suspeita de estar produzindo fenômeno anímico e não espírita.
Creio
oportuno enfatizar aqui que em verdade não há fenômeno espírita puro, de vez que a
manifestação de seres desencarnados, em nosso contexto terreno, precisa do
médium encarnado, ou seja, precisa do veículo das faculdades da alma (espírito
encarnado) e, portanto, anímicas.
Escrevem Erasto e Timóteo, em
O Livro dos Médiuns:
O espírito do médium é o intérprete, porque está ligado ao corpo, que serve para
falar, e por ser necessária uma cadeia entre vós e os espíritos que se
comunicam,
como é preciso um fio elétrico para comunicar à grande distância uma notícia,
na extremidade do fio, uma pessoa inteligente, que a receba e transmita.
(Kardec, Allan, 1975.)
Quando falamos ao telefone, por melhor que seja a aparelhagem utilizada, nossa
voz sofre inevitável influência do equipamento.
O espírito do médium exerce alguma influência sobre as comunicações que fluem
por seu intermédio? Respondem taxativamente os instrutores. Exerce. Se estes não
lhe são simpáticos, pode alterar-lhes as respostas e assimilá-las às suas
próprias idéias e a seus pendores, não influencia, porém, aos próprios espíritos,
autores das respostas; constitui-se apenas em mau intérprete.
E prossegue a aula: assim como o espírito manifestante precisa utilizar-se de
certa parcela de energia, que vai colher no médium, para movimentar um objeto,
também "para
uma comunicação inteligente ele precisa de um intermediário inteligente", ou seja, do espírito
do próprio médium.
O bom médium, portanto, é aquele que transmite tão fielmente quanto possível o
pensamento do comunicante, interferindo o mínimo que possa no que este tem a
dizer.
Quando Kardec pergunta como é que um espírito manifestante fala uma língua que
não conheceu quando encarnado, Erasto e Timóteo declaram que o próprio Kardec
respondeu à sua dúvida, ao afirmar, no início de sua pergunta, que "os
espíritos só têm a linguagem do pensamento; não dispõem da linguagem
articulada".
Exatamente
por isso, ou seja, por não se comunicarem por meio de palavras, eles transmitem aos
médiuns seus pensamentos e deixam a cargo do instrumento vesti-los, obviamente, na língua
própria do sensitivo.
Reiteramos, portanto, que não há fenômeno mediúnico sem participação anímica. O cuidado que se torna
necessário ter na dinâmica do fenômeno não é colocar o médium sob suspeita de
animismo, como se o animismo fosse um estigma, e sim ajudá-lo a ser um instrumento
fiel, traduzindo em palavras adequadas o pensamento que lhe está sendo
transmitido
sem palavras pelos espíritos comunicantes.
Certamente ocorrem manifestações de animismo puro, ou seja, comunicações e
fenômenos produzidos pelo espírito do médium sem nenhum componente espiritual
estranho,
sem a participação de outro espírito, encamado ou desencontrado.
Nem
isso, porém, constitui motivo para condenação sumária ao médium e, sim, objeto
de exame e análise competente e serena, com a finalidade de apurar o sentido do
fenômeno, seu porquê, suas causas e conseqüências.
Suponhamos, que ante determinada manifestação espiritual em certo médium de um
grupo, outro
médium do mesmo grupo mergulhe, de repente, em um processo espontâneo de
regressão de memória. Pode ocorrer que ele passe a “viver”, em toda a sua
intensidade e realismo, sua própria personalidade de anterior existência. Apresentará, sob tais
circunstâncias, todas as características de uma manifestação mediúnica
espírita, como se ali estivesse um espírito desencontrado.
Vamos lembrar, novamente, o ensinamento de Erasto e Timóteo: "A alma do
médium pode comunicar-se como a de qualquer outro". E isto é válido para a
psicografia e para a psicofonia ou até mesmo para fenômenos de efeitos físicos.
Não nos
cansamos de repetir que tais fenômenos não invalidam a realidade da comunicação
espírita e, sim, a complementam e ajudam a entendê-la melhor. A fim de que
possamos estudar o mundo espiritual, adverte Delanne, precisamos de um
instrumento, um intermediário entre as duas faces da vida - o médium.
"Como possui uma alma e um corpo", prossegue o eminente continuador
de Kardec, ele tem acesso, por uma, à vida do espaço e, pelo outro, se prende à
Terra, podendo servir de intérprete entre os dois mundos. Não deixa, portanto,
de ser um espírito somente porque está encarnado. Os fenômenos que produzir, como
espírito, são também dignos de exame e não de condenação sumária.
lgumas
perguntas podem ser formuladas para servir de orientação a essa análise. São realmente
fenômenos anímicos? ou interferências pessoais do médium nas comunicações, no
processo mesmo de as "vestir" com palavras, como dizem os espíritos? Por que estariam sendo
produzidos? E como? Com que finalidade? Como poderemos ajudá-lo a interferir o
mínimo possível a fim de que as comunicações traduzam com fidelidade o
pensamento dos espíritos?