O reino de Deus, na visão do filósofo Herculano
Os atalhos – Maria Eny Rossetini Paiva
O
Capítulo VI do livro “O Reino” reserva-nos uma surpresa! Só mesmo uma
mente privilegiada, uma cultura incomum como a do professor Herculano poderia entender os
grandes desvios, os atalhos, ásperos, estreitos, pelos quais os homens
fascinados
pelo sonho do Reino tentam implantá-lo sobre a Terra.
Herculano
termina o Capítulo V com a indagação: “Quem pode tirar do Espírito dos homens a
eterna miragem do Reino?”. Começa seu estudo falando das heresias, contra as quais a
Igreja lutou séculos. Muitas delas isolavam seus profitentes na zona rural,
longe dos soldados repressores.
Herculano
assim as descreve: “Seitas de aldeões simplórios em delírio místico visualizando em sonho as
torres e mirantes do Reino. Grupos fanáticos de visionários ilustrados que se consideravam
profetas, missionários, e arrastavam multidões sedentas de uma verdade mal
entrevista”.
Assim
ele define as heresias: “Seitas ao mesmo tempo humildes e arrogantes, de camponeses
ansiosos por amor e justiça, tentando estabelecer na Terra o Amor e a Justiça do
Reino”. Uma definição que nos faz lembrar Antonio Conselheiro no Nordeste e o
movimento do Contestado no Sul.
O anseio
por Justiça e Amor movimentou sempre os corações e muitas vezes se
autodestruiu, porque não soube alterar o modelo de poder, querendo estabelecer
outros reis e dominadores, para na verdade, apenas e tão somente mudar os
arreios,
ao invés de eliminá-los na condução da sociedade.
Ainda ressoam, sem eco, as palavras de Jesus: “Aquele que quiser ser o primeiro, que seja servo dos demais”, ou seja, poder é serviço para os outros e não domínio sobre o outro. Herculano reconhece também que ao lado das heresias surgiram as ideologias desesperadas contraditoriamente alimentadas de esperanças. Mártires do Reino arderam em fogueiras assassinas, morreram em torturas piedosas, foram degolados e torturados”...
Surpreende
Herculano, então, falando-nos que assassinos que a História nos mostra como
destruidores da civilização romana também ouviram o chamado do Reino. Quiseram pela
violência e morte implantar um novo Reino. Assim, coloca que Átila visualizou o Reino
ainda que a distância e as hordas de bárbaros derrubaram impérios. Então
pergunta: “Quem
poderia segurar os homens alucinados pelo anseio de Amor e Justiça?”.
Cita
então os mouros na Espanha, com seu alfanje devorando as cidades cristãs, em
nome da república islâmica, trazendo para a ignorância dos monges, que destruíram em
nome da fé toda a cultura grega romana, os escritos dos filósofos antigos, que sua cultura
considerada “infiel e bárbara” pelos cristãos (a pretensão e o orgulho dos
israelenses e romanos de novo, repetido na História), e que
eles, mulçumanos, preservaram, ensinando aos povos analfabetos e ignorantes a
matemática, a álgebra e os números arábicos.
“Ah, como o fascínio do reino perdurou nos
corações perjuros, torturando-os através dos séculos!” – exclama o
professor Herculano.
Apenas
os que se detiverem a ler com atenção esse capítulo VI de “O Reino” poderão
entender a beleza com que Herculano coloca como um dos precursores do Reino: Jean
Jacques Rousseau, o maldito, o incoerente revolucionário que coloca seus quatro filhos
na “roda dos indigentes” em Paris e, com sua pena, estabelece os fundamentos
das modernas sociedades, escrevendo “O contrato social”.
Mostra o
homem novo, fundamento da educação natural moderna em “O Emílio”, e
apresenta “o novo amor que cimenta a família nova, formada pelo sentimento
puro, livre das impurezas e do jugo doloroso das ambições” em Heloísa.
Uma
conduta pessoal lamentável que o transforma em réprobo social, mas essas obras
produziram “a
Revolução Francesa, a Queda da Bastilha, a derrubada dos privilégios da
Nobreza”.
Com ele surge o primeiro esboço da Religião Racional, da Nova Educação e a proclamação
do Reino na fórmula revolucionária: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
É
preciso conhecer Filosofia, ter uma cultura universalista para superar os
preconceitos, como Herculano, que continua nesse capítulo a enumerar os atalhos
pelos quais os homens tentam atingir o Reino do Amor e da Justiça.
Fala-nos
de Karl Marx e de sua luta que lhe devorou a saúde, dos dezesseis volumes
alentados de “O Capital”, onde disseca com análise rigorosa o corpo de uma
sociedade injusta. A imagem com que ele encerra a visão de Marx, o “profeta
extemporâneo, que salta da Bíblia e tenta esmagá-la com os pés”, sem conseguir, porque
estava velho demais, é algo inesquecível.
Então,
inesperadamente, novamente o autor nos surpreende e nos fala de Mussolini “um
Rei transformado em títere.
Os
direitos humanos violados. A mentira do corporativismo escravizando as massas.
O servilismo, a arrogância, a brutalidade, o ódio erigido em valores novos”.
A seguir nos fala de Hitler. E completa: “Tanta impiedade, tanta loucura no
desvario do Reino”.
De uma
forma suave e branda como uma brisa matinal, Herculano nos faz ver que
mudavam-se as estruturas, mudavam-se os donos do poder, mas faltava a mudança
que o Jovem Carpinteiro havia começado. Jesus ensinara que o Reino não começa por
sinais exteriores, mas está dentro de nós.
Mas os
homens continuaram a buscar poder, dinheiro, grandeza, sonhando como os
discípulos e os revolucionários do tempo de Jesus na Glória de Israel e em seu
domínio sobre todos os povos. Os atalhos só nos trouxeram sofrimentos!
Ele
termina o capítulo citando Gandhi: o meio é caminho do fim. Ninguém pode
atingir Paris, se tomar o caminho para Roma, da mesma forma, esses confusos atalhos nos
enleiam em uma prisão. Mas, ao mesmo tempo, caminhamos para a libertação. É
isso que ele nos explica no próximo capítulo seguinte: A CONFLUÊNCIA.
É aqui
que o Reino deve ser implantado. No entanto, isso requer, além da compreensão
de seus fundamentos, a vivência pessoal deles, porque O Reino de Deus está dentro de
nós. Apenas
os que vivem essa realidade podem entender que lutar pela implantação do Reino
de Deus não
é esperar indefinidamente por sua implantação, em uma matemática absurda e
infantil:
“O mundo
será regenerado, dizem, quando todas as pessoas entenderem a mensagem de Jesus
e a praticarem. Será a reforma íntima de cada um que nos levará à mudança social
que, então, será possível de modo brando e pacífico. Será a soma da reforma
íntima de cada um que levará o mundo a se tornar um mundo de regeneração”. Dizer
isso é desconhecer a obra da Codificação e os mais comezinhos princípios de
sociologia.
Imaginemos
que no Brasil, que carrega a vergonha histórica de ser o último país do
mundo a abolir a escravidão dos negros, as Igrejas e as Escolas principiassem em
1888, exatamente no dia 13 de maio, uma campanha para libertar os escravos, mostrando como é
desumano escravizar alguém, como isso leva à indignidade do escravizador e do
escravizado, e outras questões para reformar pela educação e sem a utilização
das leis punitivas, que estabelecem sanções a quem não as cumprir.
Por
acaso alguém pode ser tão ingênuo de imaginar que os escravocratas, as senhoras
que utilizavam os escravos iriam se sensibilizar? Todas as Igrejas, que
utilizavam e utilizam a Bíblia para justificar a escravidão, iriam modificar
seu discurso e libertar os cativos que mantinham? Na verdade, se a comunidade
internacional não interferisse, respeitando nossa liberdade, seríamos hoje
o único país do mundo a manter os negros cativos.
Alguém
poderá argumentar que a liberdade dos negros os empurrou para as favelas, que ninguém
se preocupou em educá-los para fazer deles cidadãos brasileiros com as mesmas
possibilidades dos brancos...
Com
certeza, isso é verdade, mas também nos mostra que, cedo ou tarde, esses excluídos
acordam, e
se as leis os favorecem, e já existem, EXIGEM que lhes sejam dados os direitos
usurpados, por organizações injustas e cruéis. É o que se passa hoje no Brasil, quando
o racismo, se comprovado, pode custar ao infrator até três anos de cadeia.