Bem aventurados os limpos de coração

Bem-aventurados os limpos de coração,
pois verão a Deus (Mateus, 5:8) - Rodolfo Calligaris

Como se verifica pela leitura do Velho Testamento, os judeus eram extremamente meticulosos no que dizia respeito à limpeza, quer em sua vida privada, quer nas práticas cerimoniais de seu culto.

Preocupavam-se sobremaneira com toda e qualquer forma de contaminação exterior, cumprindo à risca as regras severíssimas estabelecidas pelo rabinismo quanto à alimentação e à vestimenta, assim como aos holocaustos ou sacrifícios oferecidos no templo.

O Levítico, livro das leis judaicas, chega ao exagero de proibir certos atos devocionais a quem apresenta deformidades, a saber: "se for cego, coxo, de nariz pequeno, grande ou torcido, se tiver quebrado o pé ou a mão, se for corcovado, se remeloso, se tiver belida no olho, se portador de sarna ou impigem, etc." (21:17-20.)

Jesus, todavia, longe de dar atenção a esse formalismo de somenos importância, conhecendo a incúria geral para com os verdadeiros mandamentos de Deus, indicou, mais de uma vez, a necessidade de curarmos, com maior empenho, as mazelas e sujidades de nosso íntimo, pois são estas que nos impedem a entrada no reino dos céus.

Assim é que, a um fariseu, por quem fora convidado a jantar em sua companhia e que consigo fazia reparos por não ter ele, o Mestre, lavado as mãos antes de sentar-se à mesa, disse sem rebuços:
"Vos outros pondes grande cuidado em limpar o exterior do copo e do prato; entretanto, o interior de vossos corações está cheio de rapinas e de iniqüidades”. (Lucas, 11:37-39.)

De outra feita, respondendo à mesma censura feita a seus discípulos, chamou o povo para perto de si e assim se expressou: "Escutai e compreendei bem isto:
“Não é o que entra na boca que macula o homem; o que lhe sai da boca é que o macula”. O que sai da boca procede do coração e é o que torna impuro o homem, porquanto do coração é que partem os maus pensamentos, os assassínios, os adultérios, as fornicações, os latrocínios, os falsos testemunhos, as blasfêmias e as maledicências. Essas são as coisas que tornam impuro o homem." (Mateus, 15:1 a 20.)

Em nova oportunidade, como completando a elucidação desse ponto, ao perceber que seus discípulos procuravam afastar algumas crianças que lhe eram trazidas para que ele as abençoasse, falou-lhes severamente: "Deixai que venham a mim as criancinhas e não as impeçais, porquanto o reino dos céus é para os que se lhes assemelham. Digo-vos, em verdade, que aquele que não receber o reino de Deus como uma criança, nele não entrará." (Marcos, 10:13-15.)

Deduz-se, pois, dos ensinos de Jesus,
que impureza de coração não significa apenas malícia e abuso dos prazeres sexuais, mas também a fatuidade, o orgulho, o interesse egoísta e outras falhas morais, cujas manchas são bem mais difíceis de remover do que aquelas existentes na superfície das coisas.

Dizendo que o reino dos céus é para os que se assemelham às crianças, quer com isso dar a entender que,
enquanto não alijarmos de nós os pensamentos vulgares, a linguagem descuidada e as ações desonestas (no sentido mais amplo do termo), adquirindo a candura, a humildade e a simpleza personificadas na infância, não estaremos em condições de comparecer à presença de Deus.

Cuidemos, então,
do refinamento de nossas idéias e maneiras, para que, um dia, ainda que longínquo, possamos ter a ventura de "ver a Deus face a face"! (Mateus, 5:8.)