A Casa Transitória de Fabiano

Do livro Obreiros da Vida Eterna
André Luiz (espírito) e Francisco Cândido Xavier

Depois de viagem normal, através dos caminhos comuns, alcançamos nevoenta região, onde asfixiante tristeza parecia imperar incessantemente. De outras vezes, eu já atravessara sítios semelhantes, gastando apenas alguns minutos.

Agora, porém, era compelido a longa marcha em sentido horizontal. Atendendo a imperativos da missão, o Assistente Jerônimo procurava certa localidade, sob a denominação expressiva de “Casa Transitória de Fabiano”.

Tratava-se de grande instituição piedosa, no campo de sofrimentos mais duros em que se reúnem almas recém desencarnadas, nas cercanias da Crosta Terrestre, a qual, segundo nos informou o chefe da expedição, fora fundada por Fabiano de Cristo, devotado servo da caridade entre antigos religiosos do Rio de Janeiro, desencarnado há muitos anos.

Organizada por ele, era confiada, periodicamente, a outros benfeitores de elevada condição, em tarefa de assistência evangélica, junto aos Espíritos recém-desligados do plano carnal. Na Casa Transitória, prosseguia Jerônimo, explicando-nos, prestaremos o auxílio que nos seja possível à organização e asilaremos, em seguida, os irmãos que nos cabe socorrer.

Não fossem esses pousos de amor, tornar-se-ia muito difícil nosso trabalho. Raramente encontramos companheiros carnais em condições de atravessarem semelhante zona, logo após a morte física. Quase todos permanecem estonteados, nos primeiros dias.

Se entregues à própria sorte, seriam fatalmente agredidos pelas entidades perversas, ou habilmente desviados por elas do bom caminho de restauração gradual das energias interiores. Daí a necessidade desses abrigos fraternais, em que almas heróicas e dedicadas ao bem se consagram a santificadas tarefas de amparo e vigilância.

Não se passou muito tempo, defrontava-nos casarão enorme em plena sombra. Nada que evidenciasse preocupação artística e bom gosto na construção. Nem árvores, nem jardins em torno. A edificação baixa e simples mal se destacava no nevoeiro denso.

Temos, à frente, acolhedora casa de transição, destinada a socorros urgentes. Embora seu assombro natural, é asilo móvel, que atende segundo as circunstâncias do ambiente. Sofre permanente cerco de Espíritos desesperados e sofredores, condenados pela própria consciência à revolta e à dor.

Suas defesas magnéticas exigem considerável número de servidores e os amigos da piedade e da renunciação, que aí atendem, passam dia e noite ao lado do sofrimento. Todavia, o trabalho desta Casa é dos mais dignos e edificantes.

Neste edifício de benemerência cristã, centralizam-se numerosas expedições de irmãos leais ao bem, que se dirigem à Crosta Planetária ou às esferas escuras, onde se debatem na dor seres angustiados e ignorantes, em trânsito prolongado nos abismos tenebrosos.

Além disso, a “Casa Transitória de Fabiano”, à maneira de outras instituições salvadoras que representam verdadeiros templos de socorro nestas regiões, é também precioso ponto de ligação com as nossas cidades espirituais em zonas superiores.

Nesse instante, atingimos as barreiras magnéticas, a distância de alguns metros do portão de acesso ao interior. Fomos Atendidos por trabalhadores vigilantes, que sem hesitação nos ofereceram passagem, acionamos pequeno aparelho que nos ligou, de pronto, ao porteiro prestativo.

Não decorreram muitos minutos e achamo-nos diante de figura respeitável. Não supunha que a instituição estivesse administrada por mãos sensíveis de mulher. A Irmã Zenóbia, aparentando idade madura e aureolada de cabelos negros, proporcionava-nos informações vivas de sua energia e admirável capacidade de trabalho, através dos olhos transbordantes de luz.

Saudou-nos, cortês, sem despender muitas palavras, passando imediatamente ao assunto que a nossa presença sugeria: Fui avisada ontem, disse, bondosa, de que a missão chegaria hoje e rejubilamos com isso. Este abrigo de amor e paz cooperará conosco, asilando-nos alguns tutelados convalescentes, e, por nossa vez, desejamos ser úteis à casa, de algum modo.

Aceitamos o concurso. Reconheço a presença dum grupo harmonioso e, desde a semana finda, aguardava ensejo, não só para beneficiar a coletividade sofredora de abismo próximo, senão também a fim de socorrer certo irmão nosso, muito infeliz. Trata-se de pessoa que me foi particularmente querida e que apenas agora foi encontrada em remota região de seres decaídos.

Vencendo obstáculos, trouxemo-la para a vizinhança da Casa; porém, o perigoso estado em que se encontra não nos autoriza a fornecer-lhe abrigo e, sim, proteção indireta. Já estabelecemos medidas em favor da remoção desse amigo para a zona da Crosta, onde será brevemente internado em reencarnação expiatória, com auxílio divino.

Nesse instante, invisível campainha ressoou, estridente, com estranha entonação. Não decorreram cinco segundos e alguém penetrou a sala, rumorosamente. Era determinado servo da vigilância, que anunciou, precipite: Irmã Zenóbia, aproximam se entidades cruéis. A agulha de aviso indicou a direção norte.

Devem estar a três quilômetros, aproximadamente. A orientadora empalideceu ligeiramente, mas não traiu a emoção com qualquer gesto que denunciasse fraqueza. Acendam as luzes exteriores! — ordenou — todas as luzes! E liguem as forças da defesa elétrica, reforçando a zona de repulsão para o norte. Os invasores desviar-se-ão.

Registrar-se-iam fatos que eu ignorava? Será que Espíritos reconhecidamente maus também organizavam expedições semelhantes às que realizávamos para o bem? Que espécie de entidades seriam aquelas, para infundirem tamanha preocupação nos dirigentes esclarecidos e virtuosos de nossos trabalhos e tão grande terror nos subordinados daquela casa de amor cristão?

Impressionara-me a expressão facial de dor e incerteza do servidor que trouxera a notícia. Seriam tantos os malfeitores das sombras para justificar semelhante pavor? Sentia o raciocínio extremamente reduzido para comportar a imensidade das interrogações que me afloravam à mente.

Através de minúscula abertura, notei que enormes holofotes se acendiam de súbito, no exterior, como as luzes de grande navio assaltado por nevoeiro denso em zona perigosa. Ruídos característicos faziam-se sentir à nossa audição, informando nos que aparelhos elétricos haviam sido postos em funcionamento.

É lamentável, exclamou Zenóbia, com a manifesta intenção de restaurar-nos a tranqüilidade, que tantas inteligências humanas, desviadas do bem e votadas ao crime, se consagrem aqui ao prosseguimento de atividades ruinosas e destruidoras.

A tragédia bíblica da queda dos anjos luminosos, em abismos de trevas, repete-se todos os dias, sem que o percebamos em sentido direto. Quantos gênios da Filosofia e da Ciência dedicados à opressão e à tirania! quantas almas de profundo valor intelectual se precipitam no despenhadeiro de forças cegas e fatais! Lançados ao precipício pelo desvio voluntário, esses infelizes raramente se penitenciam e tentam recuo benéfico.

Na maioria das vezes, dentro da terrível insatisfação do egoísmo e da vaidade, insurgem-se contra o próprio Criador, aviltando-se na guerra prolongada às suas divinas obras. Agrupam-se em sombrias e devastadoras legiões, operando movimentos perturbadores que desafiam a mais astuta imaginação humana e confirmam as velhas descrições mitológicas do inferno.

Todo mal, ainda que perdure milênios, é transitório. Achamo-nos apenas em luta pela vitória imortal de Deus, contra a inferioridade do “eu” em nossas vidas. Toda expressão de ignorância é fictícia. Somente a sabedoria é eterna.

Indefiníveis ruídos alcançaram-nos o ouvido, e Zenóbia, pálida, calou-se igualmente. Em poucos segundos, tornaram-se mais nítidos. Eram gritos aterradores, como se a curta distância devêssemos afrontar hordas de enraivecidos animais ferozes. A esse tempo, tornara-se enorme o vozerio.

Pus-me, assombrado, a identificar rugidos estridentes de leões e panteras, casados a uivos de cães, silvos de serpentes e guinchos de macacos. Em dado momento, ouvimos explosões ensurdecedoras. Quase no mesmo instante, certo auxiliar penetrou o recinto e comunicou: Atacam-nos com petardos magnéticos.

A diretora resoluta ouviu, serena, e determinou: Emitam raios de choque fulminante, assestando baterias. As farpas elétricas deviam ser atiradas em silêncio, porque as explosões diminuíram até à extinção total, percebendo-se que a horda invasora se desviara noutro rumo, pelo ruído a perder-se distante. Respiramos aliviados.

Que impressionantes rugidos ouvimos! não se figuravam lamentos de corações sofredores, mas algazarra de feras soltas. Terrível novidade! Esses bandos, porém, observou a diretora. sensatamente, são antigos. Entre as narrações evangélicas, ao tempo da passagem de Nosso Senhor pelas estradas humanas, lemos o noticiário alusivo às legiões dos gênios diabólicos.

Irmã Zenóbia, a Nota do Dia, vinda do Plano Superior, manda comunicar-lhe que os desintegradores etéricos passarão por aqui amanhã. — Oh! o fogo?!... — replicou a diretora, patenteando agora inexcedível emoção. Bem o suspeitei, ponderou, acrescentando: o nosso ambiente está conturbado. A passagem dos monstros é sinal de que a limpeza será urgente.

E, fixando os olhos penetrantes no colaborador, prosseguiu: Solicitemos a cooperação das congêneres mais próximas. Precisamos apelar para o Oratório de Anatilde e para a Fundação Cristo. Tente a ligação. Irei, eu mesma, fazer o pedido. Afastando-se o assessor, Zenóbia voltou-se para nós, cheia de bondade:

Segundo observam, meus amigos, desta vez devo levantar-me e agir. Quando o fogo etérico vem queimar os resíduos da região, somos obrigados a transportar-nos com a instituição, a caminho de outra zona. Necessito movimentar providências, relativas à nova localização, e rogar o socorro de outras casas especializadas.

Fomos, então, convidados a visitar o interior e, em breve, apresentava-nos extensos dormitórios e estreitos cubículos, em que se localizavam doentes e necessitados de vários matizes. Atravessamos, igualmente, compridas salas de estudo e complicados laboratórios, notando-se que ali todo o espaço era rigorosamente aproveitado.

Em certo ponto da conversação, o delicado companheiro que nos acolhia, percebendo a curiosidade com que examinávamos a parte interna do edifício, erguido à base de substância singularmente leve, esclareceu:

— É tipo de construção para movimento aéreo. Muda-se, sem maiores dificuldades, de uma região para outra, atendendo às circunstâncias. E, sorrindo, acrescentou:

— Por isso, é denominada “Casa Transitória”.