Compilado do livro Paulo e Estêvão
Emmanuel (espírito) Francisco C. Xavier
Saulo de Tarso e
Sadoc entraram na igreja humilde de Jerusalém, notando a massa compacta de pobres e miseráveis
que ali se aglomeravam com um raio de esperança nos olhos tristes. O pavilhão singelo, construído à custa de
tantos sacrifícios, não passava de grande telheiro revestido de paredes
frágeis, carente de todo e qualquer conforto.
Tiago, Pedro e João
surpreenderam-se singularmente com a
presença do jovem doutor da Lei, que se popularizara na cidade pela sua oratória veemente e pelo acurado
conhecimento das Escrituras.
Notando um que
outro quadro menos grato ao seu olhar acostumado aos ambientes de luxo, evitava fixar os aleijados e doentes que
se acotovelavam no recinto, chamando a atenção de Sadoc, com observações irônicas e pitorescas.
— Estevão!... É Estevão!... Vozes abafadas
inculcavam o pregador, enquanto seus admiradores mais fervorosos apontavam para
ele com jubiloso sorriso.
Inesperado silêncio mantinha todas as
frontes em singulares expectativas, o moço, magro e
pálido, em cuja assistência os mais infelizes julgavam encontrar um
desdobramento do amor do Cristo, orou em voz alta
suplicando para si e para a assembléia a inspiração do Todo-Poderoso.
Em seguida, abriu um livro em forma de rolo e leu uma passagem das anotações
de Mateus: Mas, ide
antes às ovelhas perdidas da casa de Israel; e, indo, pregai dizendo: é chegado o reino dos Céus.
Estevão ergueu alto
os olhos serenos e fulgurantes, e, sem se perturbar com a presença de Saulo e dos seus numerosos amigos, começou a falar mais ou menos nestes termos,
com voz clara e vibrante:
Meus caros,
eis que chegados são os tempos em que o Pastor vem reunir as ovelhas em torno
do seu zelo sem limites. Éramos escravos das imposições pelos raciocínios, mas hoje somos livres
pelo Evangelho do Cristo Jesus. Nossa raça guardou, de épocas imemoriais, a luz do Tabernáculo e Deus nos
enviou seu Filho sem mácula.
Onde estão,
em Israel, os que ainda não ouviram as mensagens da Boa Nova? Onde os que
ainda não se felicitaram com as alegrias da nova fé? Deus enviou sua resposta divina aos nossos
anseios milenários, a revelação dos Céus aclara os nossos caminhos.
Consoante
as promessas da profecia de todos quantos choraram e sofreram por amor ao
Eterno, o Emissário Divino veio até ao antro de nossas dores amargas e justas,
para iluminar a noite de nossas almas impenitentes, para que se nos desdobrassem os horizontes
da redenção.
O Messias
atendeu aos problemas angustiosos da criatura humana, com a solução do amor que redime todos os
seres e purifica todos os pecados. Mestre do trabalho e da perfeita alegria da vida, suas bênçãos representam
nossa herança.
Moisés foi a porta, o Cristo é a chave. Com a coroa do martírio
adquiriu, para nós outros, a láurea imortal da salvação. Éramos cativos do
erro, mas seu sangue nos libertou.
Na vida e na morte, nas alegrias
de Caná, como nas angústias do Calvário, pelo que
fez e por tudo que deixou de fazer em sua gloriosa passagem pela Terra, Ele é o
Filho de Deus iluminando o caminho. Acima de todas as cogitações humanas, fora de
todos os atritos das ambições terrestres, seu reino de paz e luz esplende na
consciência das almas redimidas.
Ó Israel! tu que
esperaste por tantos séculos, tuas angústias e dolorosas experiências não foram
vãs! Enquanto outros
povos se debatiam nos interesses inferiores, cercando os falsos ídolos de
falsa adoração e promovendo,
simultaneamente, as guerras de extermínio com requintes de perversidade, tu,
Israel, esperaste o Deus justo.
Carregaste os
grilhões da impiedade humana, na desolação e no deserto; converteste em
cânticos de esperança as ignomínias do cativeiro; sofreste o opróbrio dos
poderosos da Terra; viste os teus varões e as tuas mulheres, os teus jovens e
as tuas crianças exterminados sob
o guante das perseguições, mas nunca descreste da justiça dos Céus!
Como o Salmista,
afirmaste com teu heroismo que o amor e a misericórdia vibram em todos os teus
dias! Choraste no
caminho longo dos séculos, com as tuas amarguras e feridas. Como Job, viveste da tua fé, subjugada pelas
algemas do mundo, mas já recebeste o sagrado depósito de Jeová.
O Deus Único! Oh!
esperanças eternas de Jerusalém, cantai de júbilo, regozijai-vos, embora não tivéssemos sido fiéis
inteiramente à compreensão, por conduzir o Cordeiro Amado aos braços da cruz. Suas chagas, todavia, nos compraram para o
céu, com o alto preço do sacrifício supremo!
Isaías o contemplou, vergado ao peso de
nossas iniqüidades, florescendo na aridez dos nossos corações, qual flor do céu
num solo adusto, mas, revelou também, que, desde a hora da
sua extrema renúncia, na morte infamante, a sagrada causa divina prosperaria
para sempre em suas mãos.
Amados, onde andarão aquelas ovelhas que
não souberam ou não puderam esperar? Procuremo-las
para o Cristo, como dracmas perdidas do seu desvelado amor! Anunciemos a todos os desesperançados as glórias e os júbilos do
seu reino de paz e de amor imortal!
A Lei nos retinha
no espírito de nação, sem conseguir apagar de nossa alma o desejo humano de
supremacia na Terra. Muitos de nossa raça hão esperado um príncipe dominador, que
penetrasse em triunfo a cidade santa, com os troféus sangrentos de uma batalha
de ruína e morte; que nos fizesse
empunhar um cetro odioso de força e tirania.
Mas o Cristo nos
libertou para sempre. Filho de Deus e emissário da sua glória, seu maior mandamento confirma Moisés,
quando recomenda o amor a Deus acima de todas as coisas, de todo o coração e
entendimento, acrescentando, no
mais formoso decreto divino, que nos amemos uns aos outros, como Ele próprio nos amou.
Seu reino é o da consciência reta e do coração
purificado ao serviço de Deus. Suas portas constituem o maravilhoso caminho da redenção espiritual,
abertas de par em par aos filhos de todas as nações.
Seus discípulos
amados virão de todos
os quadrantes. Fora de suas luzes haverá sempre tempestade para o viajor
vacilante da Terra que, sem o
Cristo, cairá vencido nas batalhas infrutuosas e destruidoras das melhores
energias do coração.
Somente o seu
Evangelho confere paz e liberdade. É o tesouro do mundo. Em sua glória sublime os justos encontrarão a
coroa de triunfo, os infortunados o consolo, os tristes a fortaleza do bom
ânimo, os pecadores a senda redentora dos resgates misericordiosos.
É verdade que o não
havíamos compreendido. No grande testemunho, os homens não entenderam sua divina
humildade, e os mais afeiçoados o abandonaram. Suas chagas clamaram pela nossa indiferença
criminosa. Ninguém poderá eximir-se dessa culpa, visto sermos todos herdeiros
das suas dádivas celestiais.
Onde todos gozam
do benefício, ninguém pode fugir à responsabilidade. Essa a razão por que respondemos pelo crime
do Calvário. Mas, suas feridas foram a nossa luz, seus martírios o mais ardente apelo de
amor, seu exemplo o roteiro aberto para o bem sublime e imortal.
Vinde, pois,
comungar conosco à mesa do banquete divino! Não mais as festas do pão
putrescível, mas o eterno alimento da alegria e da vida. Não mais o vinho que fermenta, mas o
néctar confortante da alma, diluído nos perfumes do amor imortal.
O Cristo é a
substância da nossa liberdade. Dia virá em que o seu reino abrangerá os filhos do Oriente e do Ocidente,
num amplexo de fraternidade e de luz. Então, compreenderemos que o Evangelho é a resposta de Deus aos nossos
apelos, em face da Lei de Moisés.
A Lei é humana;
o Evangelho é divino. Moisés é
o condutor; O Cristo, o Salvador. Os profetas foram mordomos fiéis; Jesus, porém, é o Senhor da Vinha. Com a Lei, éramos servos; com o Evangelho,
somos filhos livres de um Pai amoroso e justo!
Nesse ínterim,
Estevão sustou a palavra que lhe fluía harmoniosa e vibrante dos lábios,
inspirada nos mais puros sentimentos. Os ouvintes de todos os matizes não
conseguiram ocultar o assombro, ante os seus conceitos de vigorosas revelações.
A multidão embevecera-se
com os princípios expostos. Os mendigos, ali aglomerados, endereçavam ao
pregador um sorriso de aprovação, bem significativo de jubilosas esperanças. João fixava nele os olhos enternecidos,
identificando, mais uma vez, no seu verbo ardente, a mensagem evangélica
interpretada por um discípulo dileto do Mestre inesquecível, nunca ausente dos que se reúnem em seu nome.
Saulo de Tarso,
emotivo por temperamento, fundia-se na onda de admiração geral; mas, altamente surpreendido, verificou a diferença
entre a Lei e o Evangelho anunciado por aqueles homens estranhos, que a sua mentalidade não podia compreender.
Analisou, de
relance, o perigo que os
novos ensinos acarretavam para o judaísmo dominante. Revoltara-se com a prédica ouvida, nada
obstante a sua ressonância de misteriosa beleza. Ao seu raciocínio, impunha-se
eliminar a confusão que se esboçava, a propósito de Moisés.
A Lei era uma e
única. Aquele Cristo
que culminou na derrota, entre dois ladrões, surgia a seus olhos como um
mistificador indigno de qualquer consideração. A vitória de Estevão na consciência popular,
qual a verificava naquele instante, causava-lhe indignação. Aqueles galileus
poderiam ser piedosos, mas não
deixavam de ser criminosos pela subversão dos princípios invioláveis da raça.
Estabelecida uma
pausa na sua objurgatória, o orador voltou a falar com dignidade: Amigo, bem
se dizia que o Mestre
chegaria ao mundo para confusão de muitos em Israel. Toda a história edificante do nosso povo é um documento da
revelação de Deus.
No entanto, não
vedes nos efeitos maravilhosos com que a Providência guiou as tribos hebréias,
no passado, a manifestação
do carinho extremo de um Pai desejoso de construir o futuro espiritual de
crianças queridas do seu coração? Com o correr do tempo, observamos que a mentalidade infantil enseja mais
vastos princípios educativos.
E agora,
irmãos, peço vênia para concluir minhas palavras. Se não vos falei como desejáveis, falei
como o Evangelho nos aconselha, argüindo a mim próprio na íntima condenação de meus grandes defeitos. Que
a bênção do Cristo seja com todos vós.
Antes que pudesse
abandonar a tribuna para confundir-se com a multidão, o futuro rabino levantou-se de chofre e
observou enraivecido: Mas eu
preciso elucidar os erros desta casa. Necessito perguntar e haveis de
responder-me.
No tocante
ao Evangelho, replicou Estevão, já vos ofereci os elementos de que podia
dispor, esclarecendo o que tenho ao meu alcance. Quanto ao mais, este templo humilde é
construção de fé e não de justas casuísticas.
Jesus teve
a preocupação de recomendar a seus discípulos que fugissem do fermento das discussões e das discórdias. Eis por que não será lícito perdermos tempo
em contendas inúteis, quando o trabalho do Cristo reclama o nosso esforço.
Sempre o Cristo!
sempre o impostor! trovejou Saulo, carrancudo. Minha autoridade é insultada pelo vosso
fanatismo, neste recinto de miséria e de ignorância.
Mistificadores,
rejeitais as possibilidades de esclarecimento que vos ofereço; galileus
incultos, não quereis considerar o meu nobre cartel de desafio. Saberei vingar a Lei de Moisés, da qual se
tripudia. Recusais a intimativa, mas não podereis fugir ao meu desforço.
Aprendereis a amar
a verdade e a honrar
Jerusalém, renunciando ao nazareno insolente, que pagou na cruz os criminosos
desvarios. Recorrerei ao
Sinédrio para vos julgar e punir. O Sinédrio tem autoridade para desfazer
vossas condenáveis alucinações.