Tendo
atravessado o mar, desembarcaram no país dos Gerasenos e, mal Jesus descera da
barca, veio
ter com ele um homem possuído do espírito imundo, homem esse que ninguém conseguia
dominar nem mesmo com correntes, pois muitas vezes estivera com ferros aos pés
e preso por cadeias, os quebrara.
Vivia
dia e noite nas montanhas e aos sepulcros, a gritar e a flagelar-se com pedras.
Ao ver
Jesus, de longe, correu para ele e o adorou, exclamando em altas vozes: Que tens tu comigo,
Jesus, filho de Deus Altíssimo? Eu te suplico, não me atormentes. Isso porque
Jesus lhe ordenava: Espírito imundo, sai desse homem. Perguntando-lhe Jesus: como, te chamas?
respondeu: Chamo-me
Legião, porque somos muitos.
Ora, havia ali uma grande vara de porcos pastando na encosta do monte, e os
demônios faziam a Jesus esta súplica: manda-nos para aqueles porcos, a fim de
entrarmos neles. E como Jesus lhes desse permissão para isso, os Espíritos impuros,
saindo do possesso, entraram nos porcos; toda a manada saiu a correr impetuosamente e
foi precipitar-se no mar, onde se afogou.
Os que apascentavam fugiram e foram espalhar na cidade e nos campos a notícia do que se passara. Logo acorreram muitos até onde estava Jesus e, encontrando o homem que ficara livre dos demônios sentado a seus pés, vestido e de perfeito juízo, se encheram de temor. Ouvindo, então, dos que presenciaram o fato, a narrativa do que sucedera ao possesso e aos porcos, todos pediram a Jesus que deixasse aquelas terras.
Temos aqui um caso impressionante de possessão, cuja vítima, subjugada por uma falange de Espíritos perversos, tornara-se o terror dos sítios em que vivia. Pelo relato dos evangelistas, bem podemos imaginar-lhe a terrível figura: seminu e coberto de feridas sangrentas, olhos esfogueados, cabelos longos e em desalinho, pedaços de corrente a lhe penderem das pernas, mais haveria de parecer uma fera do que propriamente uma criatura humana.
Compadecido
do infeliz, Jesus liberta-o de tão má influência, como que lhe restitui de
pronto a razão, o domínio de si mesmo, e, convidando-o a sentar-se junto de si,
põe-se a edificá-lo com seu verbo terno e esclarecedor, preparando-o para que
viesse a ser mais um arauto da Boa Nova, e, ao voltar para a companhia dos
familiares, ao contar-lhes que coisa estupenda o Senhor fizera por ele, estivesse habilitado
anunciar-lhes também a doutrina de Amor, e Tolerância e de Justiça que estava
sendo trazida ao mundo, cuja observância é o mais seguro remédio contra todos os males que
afligem e infelicitam a Humanidade.
Quanto
aos Espíritos obsessores, não entraram nos porcos, como supuseram os
circunstantes, coisa que hoje melhor se compreende; apenas se fizeram visíveis
aos suínos
e estes, espavoridos, se precipitaram do monte para baixo em tão desabalada
carreira que, não podendo estacar ao chegarem à praia, introduziram-se no mar,
perecendo afogados.
O
episódio em tela, ao mesmo tempo que ressalta o extraordinário poder de Jesus (baseado na perfeição
de seu caráter) e sua incomensurável piedade para com os sofredores, pôs em
relevo, por outro lado, a mesquinhez de muitos homens, para os quais o
interesse material a tudo sobreleva.
A cura
daquele possesso que os trazia em sobressalto deveria ser, para os Gerasenos,
motivo de se regozijarem e se mostrarem agradecidos àquele que operara tal
maravilha. Ao
invés disso, porém, só levaram em conta a perda de seus animais e, receosos de
novos prejuízos pecuniários, despediram de suas terras, qual se fora um
intruso indesejável, o próprio Filho de Deus que os honrava com sua augusta
presença.
Nós
outros não estaremos agindo, ainda hoje, de igual maneira? Não continuamos
colocando as conveniências mundanas acima dos galardões espirituais? Conquanto
nos pese reconhecê-lo, todas as vezes que contrariamos a Doutrina Cristã, porque
seguir-lhe os preceitos nos custaria o sacrifício de algum lucro temporal, é como se, visitados
pelo Mestre, o puséssemos para fora de nossa porta!
Rodolfo Calligaris - Revista Reformador de fevereiro de 1966