Retalhos

Conta-nos Malba Tahan, num dos seus formosos apólogos, como um homem que, tendo tido em suas mãos, por alguns minutos, o “Livro do Destino”, podendo destarte fazer-se rico e venturoso, ainda perdeu essa excepcional oportunidade que se lhe oferecera para o conseguir.

É que, ao se ver de posse do precioso livro, dispondo de tempo suficiente para escrever na página de sua vida tudo quanto desejasse para o seu bem-estar, esse homem, ao lembrar-se dos seus inimigos, tão preocupado ficou em fazer-lhes mal, que o tempo se escoou, surpreendendo-o esquecido de fazer o bem a si próprio.

Essa estorieta retrata, com muita fidelidade, o que acontece a muitos: semeiam o infortúnio, mas não colhem a menor parcela de felicidade. O homem, em seus anseios de progresso, em sua luta diuturna pela aquisição de novas e melhores expressões de vida, muito há conseguido.

Devassou o globo; conquistou os elementos; subjugou as potências cegas que o oprimiam de todo lado, fazendo-as trabalhar para ele; desbravou florestas virgens, saneou paúis infectos, transformando-os em metrópoles hodiernas; coalhou os oceanos de cidades flutuantes; povoou os ares de gigantes metálicos; encurtou distâncias; ligou continentes; desenvolveu se nas artes; engrandeceu-se nas ciências; realizou pesquisas, fez experiências de toda ordem, inventou instrumentos e aparelhos que são portentos de engenho e de técnica.

Cercou o lar de todo o conforto, concebeu meios rápidos, cômodos e seguros para locomover-se no exercício de suas atividades multiformes, criou mil e uma maravilhas para a distração dos seus sentidos, nas horas de lazer. Todavia, com tudo isso, ainda vive sem sossego, ainda sofre, ainda chora, e é infeliz! Por quê?

É porque ele não se deu conta de que, acima de sua vontade, que julga onipotente, há leis divinas, tão rigorosas e matematicamente certas em seus efeitos, como as da Física, etc., às quais ainda tem de aprender a observar, a cumprir.

É porque ele não realizou, a par de seu desenvolvimento intelectual, um correspondente aperfeiçoamento moral ou espiritual, condição “sine qua non” para que haja paz nos corações e harmonia na face da Terra, cessando de vez os eternos conflitos entre os indivíduos, as classes e as nações.

É porque ele, que desvendou quase todos os mistérios da natureza, apreendendo o mecanismo das forças que nela atuam, ainda não se conhece a si próprio, no que “é” de mais essencial. Ainda não descobriu dentro de si mesmo, aquela partícula imponderável e indestrutível, cujo todo é — Deus!

Há pessoas que sofrem uma espécie de frustração, sentindo-se permanente insatisfeitas, apenas porque não sabem o que fazer de suas horas vazias. Não fossem elas tão egoístas, não vivessem tão alheias e indiferentes ao mundo que as cerca, e notariam quanto bem poderiam realizar em favor do próximo e... de si mesmas.

Aqui, um doente carecido de uma palavra de conforto e de encorajamento; Ali, um incompreendido a necessitar de um gesto de simpatia e de solidariedade; Acolá, um aflito, em favor do qual uma prece sincera faria tanto bem...

E por toda parte a melancólica velhice, clamando, suspirando por um pouco de afeto e de calor humano... E crianças, órfãs ou enjeitadas, ávidas por uma guloseima, por um modesto brinquedinho, mas principalmente por um afago ou um sorriso de ternura...

Que de males, dores e feridas podem ser curados ou amenizados com o bálsamo miraculoso do amor, transfundido em forma de atenção, bondade e carinho!

Rodolfo Calligaris - Revista Reformador de junho de 1971