Libertação – André Luiz

Operações seletivas – Ovóides
Libertação – André Luiz

O Perispírito de todos os que aí se enclausuravam, pacientes e expectadores, mostrava a mesma opacidade do corpo físico. Os estigmas da velhice, da moléstia e do desencanto, que perseguem a experiência humana, ali triunfavam, perfeitos...

Gúbio estampou na fisionomia significativa expressão e ajuntou: Quem se atreveria a nomear um anjo de amor para exercer o papel de carrasco?

Ao demais, como acontece na Crosta Planetária, cada posição, além da morte, é ocupada por aquele que a deseja e procura. Vagueei o olhar, em derredor, e confrangeu-se me toda a alma.


Na comunidade das vítimas, arrebanhadas aos magotes, como se fossem animais raros para uma festa, predominavam a humildade e a aflição; mas, entre as sentinelas que nos rodeavam, a peçonha da ironia transbordava.

Palavrões eram desferidos, desrespeitosamente, a esmo. À frente de vasta tribuna vazia e sob as galerias laterais abarrotadas de povo, compacta multidão se amontoava, irreverente.

Alguns minutos decorreram, desagradáveis e pesados, quando absorvente vozerio se fez ouvido: Os magistrados! os magistrados! Lugar! lugar para os sacerdotes da justiça!

Procurei a paisagem exterior, curiosamente, tanto quanto me era possível,
e vi que funcionários rigorosamente trajados à moda dos lictores da Roma antiga, carregando a simbólica machadinha (fasces) ao ombro, avançavam, ladeados por servidores que sobraçavam grandes tochas a lhes clarearem o caminho.

Penetraram o átrio em passos rítmicos e, depois deles, sete andores, sustentados por dignitários diversos daquela corte brutalizada, traziam os juízes, esquisitamente ataviados.
Que solenidade religiosa era aquela? As poltronas suspensas eram, em tudo, idênticas à "sédia gestatória" das cerimônias papalinas.

Varando, agora, o recinto,
os lictores passaram o instrumento simbólico às mãos e alinharam-se, corretos, perante a tribuna espaçosa, sobre a qual resplandecia alarmante facho de luz.

Os julgadores, por sua vez, desceram, pomposos, dos tronos içados e tomaram assento numa espécie de nicho a salientar-se de cima, inspirando silêncio e temor, porque a turba inconsciente, em redor, calou-se de súbito.

Tambores variados rufaram,
como se estivéssemos numa parada militar em grande estilo, e urna composição musical semi-selvagem acompanhou-lhes o ritmo, torturando-nos a sensibilidade.

Terminado aquele ruído, um dos julgadores se levantou e dirigiu-se à massa, aproximadamente nestes termos: Nem lágrimas, nem lamentos. Nem sentença condenatória, nem absolvição gratuita. Esta casa não pune, nem recompensa. A morte é caminho para a justiça. Escusado qualquer recurso à compaixão, entre criminosos.

Não somos distribuidores de sofrimento, e, sim, mordomos do Governo do Mundo. Nossa função é a de selecionar delinqüentes, a fim de que as penas lavradas pela vontade de cada um sejam devidamente aplicadas em lugar e tempo justos.

Quem abriu a boca para vilipendiar e ferir, prepare-se para receber, de retorno, as forças tremendas que desencadeou através da palavra envenenada. Quem abrigou a calúnia, suportará os gênios infelizes aos quais confiou os ouvidos.

Quem desviou a visão para o ódio e para a desordem, descubra novas energias para contemplar os resultados do desequilíbrio a que se consagrou, espontaneamente.

Quem utilizou as mãos em sementeiras de malícia, discórdia, inveja, ciúme e perturbação deliberada, organize resistência para a colheita de espinhos.

Quem centralizou os sentidos no abuso de faculdades sagradas espere, doravante, necessidades enlouquecedoras, porque as paixões envilecentes, mantidas pela alma no corpo físico, explodem aqui, dolorosas e arrasadoras.

A represa por longo tempo guarda micróbios e monstros, segregados a distância do curso tranqüilo das águas; todavia, chega um momento em que a tempestade ou a decadência surpreendem a obra vigorosa de alvenaria e as formas repelentes, libertadas, se espalham e crescem em toda a extensão da corrente.

Seguidores do vício e do crime, tremei!
Condenados por vós mesmos, conservais a mente prisioneira das mais baixas forças da vida, à maneira do batráquio encarcerado no visco do pântano, ao qual se habituou no transcurso dos séculos!...

Nesse ponto, o orador fez pausa e reparei os circunstantes. Olhos esgazeados pelo pavor jaziam abertos em todas as máscaras fisionômicas.

O juiz, por sua vez, não parecia respeitar o menor resquício de misericórdia. Mostrava-se
interessado em criar ambiente negativo a qualquer espécie de soerguimento moral, estabelecendo nos ouvintes angustioso temor.

Prolongando-se o intervalo, enderecei com o olhar silenciosa interrogação ao nosso orientador, que me falou quase em segredo: O julgador conhece à saciedade as leis magnéticas, nas esferas inferiores, e procura hipnotizar as vítimas em sentido destrutivo, não obstante usar, como vemos, a verdade contundente.

Não vale acusar a edilidade desta colônia, prosseguiu a voz trovejante,
porque ninguém escapará aos resultados das próprias obras, quanto o fruto não foge às propriedades da árvore que o produziu. Amaldiçoados sejam pelo Governo do Mundo quem nos desrespeite as deliberações, baseadas, aliás, nos arquivos mentais de cada um.

Quando encontramos um morto de cada vez, é fácil conceder-lhe sepultura condigna, mas, se os cadáveres são contados por multidões, nada nos resta senão adotar uma vala comum.

Todos os Espíritos renascem nos círculos carnais para destruírem os ídolos da mentira e da sombra e entronizarem, dentro de si mesmos, os princípios da sublimação vitoriosa para a eternidade, quando não se encontram em simples estrada evolutiva; contudo, nas demonstrações de ordem superior que lhes cabem, preferem, na maioria das ocasiões, adorar a morte na ociosidade, na ignorância agressiva ou no crime disfarçado, olvidando a gloriosa imortalidade que lhes compete atingir.

Ao invés de estruturarem destino santificante, com vistas ao porvir infinito, menosprezam oportunidades de crescimento, fogem ao aprendizado salutar e contraem débitos clamorosos, retardando a obra de elevação própria.

E se eles mesmos, senhores de preciosos dons de inteligência, com todo o acervo de revelações religiosas de que dispõem para solucionar os problemas da alma, se confiam voluntariamente a semelhante atraso, que nos resta fazer senão seguir nas linhas de paciência por onde se regula a influenciação dos nossos benfeitores? Sem dúvida, esta paisagem é inquietante e angustiosa, mas compreensível e necessária.

Perguntei-lhe se
naqueles sítios purgatoriais não havia companheiros amigos, detentores da missão de consolar, ao que o nosso Instrutor respondeu afirmativamente. Sim, disse, esta imensa coletividade, dentro da qual preponderam individualidades que pelo sofrimento contínuo se caracterizam pelo comportamento sub-humano, não está esquecida.

A renúncia opera com Jesus, em toda parte. Agora, todavia, não dispomos de ensejos para a identificação de missionários e servidores do bem. Vamos ao estudo que nos interessa de mais perto. Descemos alguns metros e encontramos esquálida mulher estendida no solo.

Gúbio nela fixou os olhos muito lúcidos e, depois de alguns momentos, recomendou-nos seguir-lhe a observação acurada. Vês, realmente, André? - inquiriu, paternal.
Percebi que a infeliz se cercava de três formas ovóides, diferençadas entre si nas disposições e nas cores, que me seriam, porém, imperceptíveis aos olhos, caso não desenvolvesse, ali, todo o meu potencial de atenção.

Reparo, sim - expliquei, curioso -,
a existência de três figuras vivas, que se lhe justapõem ao perispírito, apesar de se expressarem por intermédio de matéria que me parece leve gelatina, fluida e amorfa.

Elucidou Gúbio, sem detença: São entidades infortunadas, entregues aos propósitos de vingança e que perderam grandes patrimônios de tempo, em virtude da revolta que lhes atormenta o ser.
 
Gastaram o perispírito, sob inenarráveis tormentas de desesperação, e imantam-se, naturalmente, à mulher que odeiam, irmã esta que, por sua vez, ainda não descobriu que a ciência de amar é a ciência de libertar, iluminar e redimir.

Do livro Libertação – André Luiz