10 - Visão Espírita da Bíblia
José Herculano Pires
21 – Como Deus tirou o Homem do Barro ou do Pó da Terra
Todos conhecemos a alegoria bíblica da formação do homem, mas nem todos sabemos que, para muita gente, essa alegoria representa uma verdade incontestável, uma realidade. Diz a tradução de Almeida, no Capítulo II do Gênesis, versículo 7:
"E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida: e o homem foi feito alma vivente". A mesma tradução, na edição revista e atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil, corrige "narizes" para "narinas" e faz outras pequenas alterações.
Na tradução de Figueiredo "o pó da terra" é substituído pelo "barro da terra". De qualquer maneira, o fato essencial é o mesmo em todas as versões bíblicas, ou seja: Deus formou o homem da terra e assoprou-lhe a vida nas narinas.
O Espiritismo não pode admitir que essa alegoria, aliás muito bela e expressiva, seja tomada ao pé da letra. Kardec admite, no Livro dos Espíritos, que Adão tenha realmente existido, como possível sobrevivente de um cataclismo na região citada pela Bíblia.
Mas adverte que é mais razoável considerá-lo como um mito ou uma alegoria, "personificando as primeiras idades do mundo". A espécie humana não começou por um só homem. Surgiu na Terra pelo encadeamento natural da evolução dos seres.
Em “A Gênese”, Kardec estuda a posição do homem na escala animal e declara: "Por mais que isso possa ferir o seu orgulho, o homem deve resignar-se a ver no seu corpo material o último elo da animalidade na Terra".
Há contradição, neste ponto, entre a Bíblia e o Espiritismo? Kardec responde acertadamente que não. Porque o Espiritismo apenas explica a alegoria bíblica, dá-lhe a necessária interpretação, esclarece-nos quanto ao espírito da letra, em vez de escravizar-nos à "letra que mata". Os que, pelo contrário, se apegam à letra, acabam fazendo da Bíblia um livro absurdo, contraditório e inaceitável para as pessoas de discernimento.
Os Espíritos esclarecem bem esta questão, como vemos na pergunta 47 de “O Livro dos Espíritos”. Kardec pergunta: "A espécie humana estava entre os elementos orgânicos do globo terrestre?" E a resposta é a seguinte: "Sim, e veio a seu tempo; foi isso que deu motivo a dizer-se que o homem foi feito do limo da terra".
Como se vê, por esta clara resposta, a obra de Deus não se assemelha aos grosseiros trabalhos humanos. Deus cria através de processos cósmicos ainda inacessíveis ao nosso entendimento. Os livros bíblicos não poderiam tratar da criação do homem senão de forma alegórica.
22 – Eva e a Costela de Adão: um Mito de origem social
Acreditam alguns comentaristas e exegetas que a alegoria bíblica da criação da mulher tinha uma finalidade social: incutir no homem o respeito pela companheira tirada da sua própria carne. A verdade, ao que parece, é outra.
Esse objetivo seria melhor atingido se Deus criasse o casal ao mesmo tempo. A Bíblia deu preferência ao homem e colocou a mulher em segundo plano. O motivo deve ser a necessidade de atender aos preconceitos da época.
Mas é incrível que até hoje, no mundo inteiro, multidões de pessoas acreditem que Adão dormiu sozinho e acordou acompanhado de Eva, porque Deus lhe tirou uma costela e dela fez a primeira mulher.
A passagem figura no Capítulo II do Gênesis, versículos 18 a 25. Note-se que Deus já havia criado todas as coisas, o mundo já estava feito e povoado de animais, com Adão solitário no Éden, quando a mulher foi criada. Tudo concorre para a sua situação de dependência e subserviência das sociedades patriarcais.
O próprio Moisés não compreenderia a mulher criada ao mesmo tempo que o homem. Por isso, o espírito-guia do povo hebreu, que na verdade era o deus-familiar de Abrão, Isaac e Jacó, lançou mão dessa alegoria ingênua e poética, proveniente de lendas folclóricas.
Quem estuda, na História das Religiões e na Antropologia cultural, o problema das cosmogonias antigas, não tem dúvida quanto à natureza lendária e alegórica dessa passagem bíblica.
Basta recordar os processos mitológicos de criação, em que os próprios deuses eram tirados do corpo de outros deuses e as criaturas humanas também, como no caso muito conhecido da descendência de Brama, na índia.
Aceitar, pois, literalmente, o relato bíblico da criação da mulher é deixar de lado a nossa faculdade de pensar, que Deus nos deu para que seja usada e desenvolvida cada vez mais. A situação de dependência da mulher se justifica ainda com a alegoria do pecado original, pois é a mulher, criatura inferior, que põe o homem a perder.
O Cristianismo veio modificar essa situação, típica das sociedades patriarcais de toda a Antiguidade, ao valorizar a mulher no plano espiritual, como vemos no Novo Testamento, a começar do nascimento do Messias.
O Espiritismo, que representa o desenvolvimento natural do Cristianismo, completa essa modificação, ao revelar que homem e mulher só existem como expressões da vida nos planos inferiores. O espírito não tem sexo e se encarna neste ou naquele sexo de acordo com as suas necessidades evolutivas.
Por isso Jesus ensinou que os espíritos "nem se casam nem se dão em casamento, pois são como os anjos do céu", como vemos na passagem de Mateus sobre a ressurreição (Mateus, 22:23-33). E Paulo sustenta o mesmo princípio, afirmando que em Cristo, na vida espiritual que ele nos oferece: "não há nem homem nem mulher". (Gaiatas, 3:28).
23 – Alegoria da Queda do Homem na Bíblia
O dogma da queda do homem é sustentado no campo religioso como um dos mistérios de Deus, impenetrável à inteligência humana. Seu fundamento bíblico é o Capítulo III do Gênesis.
Todos conhecem a lenda poética da árvore proibida, no meio do jardim do Éden, com a serpente demoníaca (a píton grega) enganando Eva, que leva Adão ao pecado original da desobediência. Mas em virtude do dogmatismo fideísta das religiões, poucas pessoas admitem a natureza alegórica desse conto ingênuo.
O símbolo está evidente, à flor da pele. Mas os que consideram a Bíblia como a palavra de Deus não podem admiti-lo. Entendem a alegoria como realidade divina, tomando-a simplesmente ao pé da letra. Kardec explica em A Gênese , Capítulo XII, toda a simbologia dessa passagem bíblica:
“Adão é a personificação da Humanidade e sua falta representa a fragilidade humana; a árvore da vida é o símbolo da vida espiritual, que desenvolve a consciência humana e o livre-arbítrio da criatura; o fruto proibido está no meio do jardim de delícias, porque é a tentação dos prazeres materiais; a desobediência de Adão e Eva é a violação das leis de Deus pela concupiscência do homem; a serpente é a imagem da perfídia, da maldade que incita os outros ao erro”.
Pergunta Kardec: "Por que impor à fé ingênua da credulidade infantil, como verdades, alegorias tão evidentes, falseando o seu julgamento e fazendo-as mais tarde encarar a Bíblia como um conjunto de fábulas absurdas?"
Além disso, Kardec estuda o verdadeiro sentido dos termos bíblicos em sua origem hebraica e estabelece comparações entre o texto sagrado e conhecidas alegorias mitológicas.
A forma das alegorias bíblicas é bela e o seu sentido é profundo. Mas essa beleza e essa profundidade são transformadas em absurdo e ridículo pela interpretação literal.